Mais de meio século nos separa da primeira publicação pela Ática do que então se apresentava como as obras completas de Fernando Pessoa. Sabemos hoje que o que então se publicava era uma pequena parte dos escritos que o poeta deixou maioritariamente inéditos. A partir dos anos 80, com o início do estudo sistemático do espólio com vista à edição científica desses textos e sobretudo com a publicação do Livro do Desassossego, foi necessário rever a imagem que de Pessoa ia sendo construída pela crítica cujas leituras incidiam sobretudo nos heterónimos ditos clássicos, ainda que, como observou Eduardo Lourenço, ela se dividisse por três modelos fundamentais de explicação da heteronímia: o de uma multipolaridade sem síntese possível ou desejável (Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, David Mourão-Ferreira); o que supunha uma clivagem polar hegemónica, postulando um Pessoa nuclear, que alguns defendiam ser o da Mensagem e outros Caeiro (Agostinho da Silva, António Quadros); e, finalmente, o terceiro, de que Jacinto do Prado Coelho era o principal mentor, que procurava conciliar, explicando uma pela outra, uma poética da “unidade” e uma poética da “diversidade” que coexistiriam na obra de Fernando Pessoa; (Lourenço, 1986)

Nos remotos anos 60, antes mesmo que este fosse publicado, apenas Jorge de Sena se interrogou sobre o novo Pessoa que o Livro do Desassossego vinha revelar, manifestando desde logo preocupação com o estatuto textual dos fragmentos avulso em que então consistia e a partir dos quais um corpus literário deveria poder vir a ser instituído. Num ensaio de 1964, escreve: “Que a nossa insistência no “fragmentário” não seja mal compreendida. Não se trata de sub-repticiamente desvalorizar Fernando Pessoa, ou em particular um “livro” que tem forçosamente de ser seleccionado de uma massa de fragmentos inaproveitáveis até por excessivamente fragmentários ou ilegíveis. Ou, reciprocamente, de defender o carácter necessariamente fragmentário de uma obra, como este “livro” cuja estrutura tinha de ser, à base de comentários ao desassossego, esta mesma ausência dela. Estamos apenas definindo, através dela própria, uma maneira de ser, para que uma obra possa ser melhor compreendida” (Sena, 1984: 196-197.). Ao observar que a obra de Pessoa integra o fragmento como uma “maneira de ser” e que o facto de o integrar não deixa incólume o “todo” até então conhecido, mais construído, estruturado ou encenado, Jorge de Sena implicitamente reconhece que essa mesma obra prepara a aceitação do fragmento, frequentemente sinónimo de fracasso nos planos estético e cognitivo, apesar do momento áureo da sua valorização enquanto teoria e prática no romantismo.

Como Fernando Cabral Martins observou, confrontam-se em Pessoa uma realidade textual fragmentária e um persistente ideal de completude. Com efeito, só no caso dos cinco livros que publicou (Mensagem e os quatro opúsculos de poesia inglesa) teria sido aplicado o princípio de síntese a que o próprio Pessoa, em vários lugares, se referiu como a necessidade da síntese (“Creio na síntese, sempre”, escreve Pessoa em 1916, no artigo de Exílio, “Movimento Sensacionista”). Como observa também aquele investigador, se persistimos em projectar sobre os textos de Pessoa, nomeadamente os seus textos críticos, as ideias de suma e composição estrutural, isso acontece porque essa modalidade caracteriza certas sequências poéticas (caso de O Guardador de Rebanhos, ou de The Mad Fiddler) e alguns cantos com a importância de Ode Marítima ou de Tabacaria. Mas a maioria dos textos que deixou inéditos são fragmentos, o que foi publicado em vida dá conta de um material constitutivamente disperso, e por isso a obra de Pessoa pode ser vista como a grande obra fragmentária da modernidade. (Cabral Martins, 2003)

Alguns especialistas têm defendido a ideia de que o Primeiro Fausto e O Livro do Desassossego constituiriam o laboratório poético onde se testa e prova a necessidade da heteronímia. José Augusto Seabra observa que a escrita desses textos “dá indícios da origem dos heterónimos” e que eles são o fundamento da linguagem em que estes últimos se fixaram (Seabra, 1982). Para Manuel Gusmão, por seu turno, o Fausto constituí “o subsolo da voz que, cindindo-se, faz a poesia de Pessoa” (Gusmão, 1986:121.). Neste projecto que Pessoa abandonou, a alternância das vozes mascara mal um irredutível monologismo: Fausto é a única dramatis persona de uma tragédia subjectiva (como Teresa Sobral Cunha sugeriu que fosse designado o poema), tragédia essa centrada na impossibilidade de conhecer, de amar e nomear e consequentemente de ter em conta ou fazer a experiência da alteridade. A partir desse poema dramático inacabado ter-se-ia constituído a heteronímia como um conjunto de ficções que diversamente procuram responder às várias impossibilidades que no Fausto estão na origem do conflito dramático propriamente dito, conflito esse puramente interior, dado que nele se procuraria representar “a luta entre a Inteligência e a Vida, em que a Inteligência é sempre vencida” (Fernando Pessoa, 1966:69). Assim, para Manuel Gusmão o Fausto, mostrando embora a necessidade da heteronímia, não a pôde contudo conter e, reciprocamente, a invenção da heteronímia terá sido a forma encontrada por Pessoa para contornar a impossibilidade de se escrever na modernidade um longo poema dramático. Também no Livro do Desassossego deparamos com fragmentos que resultam, como no Fausto, simultaneamente de uma falha de arquitectura e de coesão semântica. Nesse sentido é possível falar-se, nos dois casos, de uma escrita fragmentária que se escreve contra a unidade, seja ela de ordem compositiva, conceptual ou mesmo “teológico-política” (Gusmão, 2003).

Uma leitura de Pessoa centrada nas questões da verdade e do fingimento, como a leitura que dele fazia a geração da presença, mostra bem a dificuldade que ela teve em reconhecer o valor de uma voz na qual se desfaziam os fundamentos da sua própria poética (o eu, a espontaneidade e a originalidade). Esse reconhecimento só pode dar-se, com efeito, por intermédio de uma leitura capaz de o subtrair ao poeta romanticamente pressuposto ou, dito de outro modo, capaz de o ler como um moderno. Para tal a recepção crítica de Pessoa deve ter em conta o que na sua obra releva de uma tendência para o inacabamento e o que releva de uma heteronímia generalizada, dado que a fragmentação, nela, é também fragmentação do sujeito enquanto unidade excessivamente determinada. Pode dizer-se que a descoberta de O Livro do Desassossego e de muitos textos atribuídos a uma mais vasta do que se supunha galeria de heterónimos (como António Mora, os irmãos Crosse, o Barão de Teive, entre outros) veio relançar os estudos críticos na medida em que deu conhecimento do carácter constitutivamente disperso da sua obra. Só agora estamos em condições de compreender o que em Pessoa é um movimento de infinitização em acto na sua escrita, bem como o alcance e a justeza da afirmação do autor quando refere a tendência para a despersonalização e para o desdobramento dramático. (“Tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo” (PD:25).

Interessa neste momento especificar que a palavra fragmento designa coisas distintas, consoante se entenda por tal aquele tipo de textos que nos chegam incompletos por se terem perdido parcialmente no processo da sua transmissão, ou porque foram deixados inacabados. Numa outra acepção, enquanto forma breve e um género da prosa, o fragmento integra uma importante tradição, que podemos supor ter-se iniciado com Heraclito e a Biblia.Com o romantismo, nomeadamente Schlegel, fragmento e romance eram géneros aparentados pelos quais se experimentava as possibilidades formais de uma nova Aufklärung, e isto porque, a seu ver, ambos permitiam que o pensamento se exercesse fora da totalidade sistemática, apostando num conhecimento desligado de imposições lógicas. Evoque-se, por exemplo, o espanto de Novalis perante a perda que sofre a ideia de cada vez que é apresentada, ou a perspectiva de Nietzsche que recomendava que não se falseassem as coisas por intermédio de uma ordenação factícia de dedução e de dialéctica. Mais próximo de nós, também Adorno observou que na escrita do fragmento e na do ensaio se procede de um modo aproximado, dado que se trata, nos dois casos, de formas “metodicamente não metódicas”, cujo estilo e métodos visam a “elaboração não elaborada” de uma lógica mais associativa do que demonstrativa, desimpedindo o caminho do pensamento por um encadeamento não constritivo das proposições. Como observou Susini-Anastopoulos, os escritores de fragmentos procedem na convicção de que a aventura do conhecimento pode ser vivida de uma forma alternativa, razão pela qual, segundo uma formulação de Nietzsche, preferem esmigalhar o mundo previamente, de modo a apresentar dele uma nova inteligibilidade. A essa exigência respondia a prática do fragmento pelos escritores do Athenaeum e o seu legado para a posteridade consistiu em terem demonstrado a possibilidade de em cada caso convocar, no seu exercício, uma série de “contra-proposições”cognitivas exercendo-se de fora da abstracção lógica e da teleologia (Susini-Anastopoulos, 1997). O caso de Pessoa, contudo - o que se torna claro se pensarmos que o único projecto que um Bernardo Soares pode ter é o de escrever uma “autobiografia sem factos” -  será mais próximo do de Musil ou Valéry, pelo modo como o fragmento é colocado ao serviço de uma ideologia globalmente anti-romanesca. Virá a propósito evocar neste ponto o que nos diz Walter Benjamin em “O Narrador”. A partir do momento em que se perde a sabedoria épica da narrativa tradicional, aquilo com que nos deparamos, na modernidade, é com a proliferação de uma escrita ou de escritas que já não transportam a verdade da experiência, não comunicam nenhuma sabedoria nem transportam um sentido. Não lemos em Bernardo Soares que a verdade são lampejos breves, como os jogos de luz e sombra motivados pelos aguaceiros que por vezes varrem a rua dos Douradores, que escrever é “ter subitamente a noção da mónada intima” (LD: 74)?

A escrita que de algum modo surge dramatizada em Pessoa/Soares dá testemunho de um tempo e de uma condição. Escreve-se agora sobre as ruínas do ideal clássico de construção e do princípio de observação de regras que os românticos, seduzidos pelos “elementos secundários do pensamento” sacrificaram: A única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito” (LD: 243). Quando atentamos conjuntamente nos dois grandes textos inacabados de Pessoa o Primeiro Fausto e o Livro do Desassossego, é inevitável pensar-se nos diferentes modos de relação com a tradição que representam. Na realidade, tudo se passa como se, ao procurar escrever um drama em verso, na tradição de Shakespeare, Schiller ou Goethe, Pessoa acreditasse ainda na possibilidade de reviver, na sua época, o gesto heróico próprio dos géneros elevados (o épico ou trágico). Mas no Livro do Desassossego, é outro o espírito: o tédio, o spleen. O que nele se descobre é um grau de consciência maior, uma consciência da consciência, que justifica o recuo que possibilita a ironia: “Tem-me perseguido, como um ente maligno, o destino de não poder desejar sem saber que terei de não ter (…); um romântico faria disto uma tragédia; um estranho sentiria isto como uma comédia: eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia”. (LD, p.200).  Este livro impossível testemunha de uma nova condição do objecto artístico que corresponde a um devir fragmento da obra, entendida como processo e apontando em primeiro ligar para o gesto de escrever.

Para o Livro do Desassossego, ao contrário do que sucedeu com o Fausto, nenhum princípio construtivo parece ter alguma vez sido esboçado. Nele encontramos a extensão caótica, lacunar e contraditória de uma escrita simultaneamente torrencial e monótona, repetitiva e ameaçada pela própria desintegração que promove. De um modo mais radical do que nos autores do primeiro romantismo alemão, nomeadamente de Schlegel, a quem Benjamin apelidava de “sistemático fragmentário” por ter procedido a uma reciclagem do sistema por via da noção de caos, a escrita destes fragmentos, prosseguindo através da repetição e do paradoxo e mesmo através da ausência da sua própria ausência de sentido, é uma escrita neutra (ou do neutro). Arruma-se ou dispõe-se de um modo fragmentário não tanto porque se pretenda que repouse numa forma breve, mas porque se apresenta como estilhaço de um todo perdido ou em perda, ou nunca verdadeiramente constituído. Verdadeira escrita do desastre, no sentido que lhe confere Maurice Blanchot, ela faz estremecer as noções tradicionais de autoria, sentido e obra (e as noções correlativas de Ser, Presença, Sujeito) e questiona um pensamento do livro que tende a subordinar o pensamento à continuidade discursiva que o codex propicia. Nesta prosa fragmentada e descontínua, vão-se alinhando as figuras da contra-ordem fragmentária que Pessoa/Soares inventa; uma “sobredeterminação semântica” perturbadora da lógica, aliada ao uso frequente do paradoxo, ou do “enlace de metáforas e oxímoros”, numa prosa descontínua marcada por “ um ritmo que é dissolvente e torna todas as coisas outras coisas qualquer” (Lindeza Diogo, 1999, p.187). Todos os procedimentos que têm que ver com a noção de ressassement de Maurice Blanchot, palavra que significa repisar, repetir continuadamente a mesma coisa e marca o constante regresso ao já-dito que desloca o sentido e cria um efeito de distância que dificulta o reconhecimento ou, suspendendo-o, prepara a aceitação do diverso. Como Silvina Rodrigues Lopes notou a obra de Pessoa dá “ testemunho do irrepresentável, através da insuficiência e do consequente repisamento ou ressassement do que se diz”, não porque o irrepresentável o seja, neste caso, pela sua grandiosidade absoluta, mas porque decorre da desadequação de toda a representação (Rodrigues Lopes, 2003 :18). Outros aspectos seria necessário, mais detidamente, assinalar, as omnipresentes descrições da insónia e do tédio e o consequente efeito de uma rarefacção ou opacidade do tempo – um tempo imóvel, impassível; o anular das diferenças e a coincidência dos opostos; a indeterminação ou instabilidade das formas da enunciação. De alguns destes processos Pessoa parece ter tido uma justa percepção pelo que escreve em alguns dos seus textos críticos, mas essa reflexão tê-la-á efectuado sobretudo ao escrever estes seus inclassificáveis fragmentos.

 

 

 

Bibliografia

 

Fernando Pessoa, Poemas Dramáticos, Lisboa, Ática Editora, 1966 (PD).

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, Richard Zenith (ed), Lisboa, Assírio e Alvim, 2005 (LD).

 

Diogo, A.A. Lindeza, “O Livro do Desassossego”, AAVV Biblos - Enciclopédia Verbo das Literaturas de língua Portuguesa, Lisboa/S. Paulo, 1999; Gusmão, Manuel, O Poema Impossível- O «Fausto» de Pessoa , Caminho, 1986; Gusmão, Manuel, “O «Fausto» – Um teatro em Ruínas”, Românica, nº12, 2003; Lopes, Silvina Rodrigues,    Exercícios de Aproximação, Lisboa, Vendaval, 2003; Lourenço, Eduardo, Fernando Rei da Nossa Baviera, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986; Martins,  Fernando Cabral, O Trabalho das Imagens, Aríon Publicações Lda, 2000; Martins, Fernando Cabral, “Breves Notas sobre a Alta Definição”, Românica, nº 12, 2003; Seabra , José Augusto,   Fernando Pessoa ou o Poetodrama, S. Paulo, 1982; Sena, Jorge de, Fernando Pessoa e Cª Heterónima (Estudos Coligidos 1940-1978), Lisboa, Edições 70, s/d [1974]; Susini-Anastopoulos, Françoise, L’Ecriture Fragmentaire. Définitions et Enjeux, Paris, Presses Universitaires de France, 1997.

 

      

 

Patrícia Soares Martins