O interseccionismo é um novo género de paulismo - afirmou Pessoa a Cortes-Rodrigues, em carta datada de 4 Outubro de 1914. De facto, quase em simultâneo com o entusiasmo por uma teorização e realização poéticas do paulismo, Pessoa e Sá-Carneiro, sob a influência quer do cubismo quer do futurismo (ismos que entretanto já se faziam sentir de modo mais nítido) iniciam os seus projectos para a realização de uma Antologia Interseccionista que viria substituir, por sua vez, o sonho anterior não concretizado, de uma revista paúlica. Sem dúvida que, em pouco menos de um ano, o paulismo evolui, ou melhor, viaja (já que Pessoa afirmou, na célebre carta sobre a génese dos heterónimos, que não evolui, viaja), rapidamente para outras paragens ísmicas que continuavam a impôr-se por toda a Europa. Dado o primeiro passo com as exercitações paúlicas de sucessivas intersecções de paisagens e estados de alma, de jogos de interpenetrações de desassossegados modos de sentir e de pensar, da vertigem de planos diversificados fisícos e metafísicos que se sobrepõem na linha da consciência do poeta, estava agora aberto o caminho para Pessoa e Sá-Carneiro poderem arriscar uma maior complexidade desta técnica, já a afastar-se do ambiente de estagnação paúlico e a aproximar-se, a passos largos, do ritmo acelerado da técnica interseccionista utilizada já, quer pelo cubismo quer pelo futurismo.

Deste modo, o interseccionismo vem a ser definido por Sá-Carneiro como o paulismo a sério (em carta a F. Pessoa, datada de 2 Dezembro de 1914) e por Pessoa, como um quasi futurismo, ou mesmo como uma variante nacional do futurismo europeu (em carta, não datada, ao editor inglês Frank Palmer). Efectivamente, o interseccionismo, tal como Pessoa o concebeu e teorizou, assemelha-se, em 1914, em muitos dos seus aspectos à pintura futurista italiana, nomeadamente, de Severini, Boccioni, Carrà e Russolo que, por sua vez, teve de imediato, como é sabido, ressonância literária, na aplicação que Marinetti irá fazer destes princípios plásticos à literatura, logo no primeiro manifesto de 1909 . Muito em particular, o conceito de analogia, desenvolvido no âmbito da pintura e da literatura futurista, irá ter um eco feliz na plena realização teórica e poética do interseccionismo pessoano. Tratava-se de dar uma sensação dinâmica, nas palavras de Gino Severini, no seu Manifesto de 1913, a qual seria conseguida pela passagem de uma analogia real a uma analogia aparente. Ou seja, e ainda nas palavras futuristas de Severini, a obra (plástica) deveria partir de uma situação/metáfora inicial (real) para depois dela se afastar, intensificando a sensibilidade plástica (quer do pintor, quer do público que a olha) para evocar uma outra cadeia de comparações - analogias (aparentes) - que já não seriam da ordem do visível e do concreto, mas da ordem da abstração e da sensibilidade de cada um de nós. Deste modo, e agora no âmbito da literatura, a metáfora liberta-se completamente das suas amarras, ganha asas, e permite ao poeta, muito em particular, trabalhar a aparente velocidade com que as imagens se sucedem aos nossos olhos/consciência e, num perfeito prisma de intersecções, apresentá-las já fundidas, por vezes, de um modo aparentemente não-lógico, motivando e provocando quem as lê a encontrar lugares de sentido diversificados.

Ao lermos as seis partes que compõem o poema de Pessoa ortónimo, Chuva Oblíqua, paradigma ou mesmo poema-programa da escrita interseccionista desta época, todos estes princípios teóricos do interseccionismo, como um quasi futurismo, se evidenciam. A intersecção inicial do primeiro poema, entre a paisagem marinha de um porto, de um cais donde entram e saiem os navios, e o sonho, paisagem interior do poeta, dá origem a um conjunto de seis poemas onde Pessoa se afasta de uma poética da estagnação que concebe o poeta de sonho como um visual estático, e se estreia numa poética do movimento, onde o sonho ganha acção e permite visualizações, verdadeiras vidências poéticas, que consentem já a estranheza de versos quasi futuristas como A missa é um automóvel que passa, ou mesmo, Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena/ Ser o perfil do rei Quéops… .

Efectivamente, Chuva Oblíqua, datada de 8 de Março de 1914 (no célebre dia trinunfal da sua vida, a acreditarmos no poeta, dia em que deu vida aos heterónimos) e publicada no segundo número da revista Orpheu, em 1915, é, entre nós, o expoente máximo da literatura interseccionista (nas próprias palavras de Pessoa), talvez só encontrando uma correspondência directa na pintura de Santa-Rita Pintor, apesar de podermos encontrar também na poesia e prosa de Mário de Sá-Carneiro marcas do entusiasmo por este ismo. No entanto, o interseccionismo em Pessoa e em Sá-Carneiro, e o interseccionismo plástico de Santa-Rita, são projectos independentes, se bem que derivados de uma fonte comum: o futurismo italiano. É curioso notar que Chuva Oblíqua foi escrita antes do regresso a Portugal de Santa-Rita, de Amadeo de Souza-Cardoso e dos Delaunay, o que significa que Pessoa teria um conhecimento prévio desta técnica interseccionista, antes do convívio com alguns destes seus companheiros de Orpheu. No entanto, Santa-Rita já falava nos seus quadros de interseccionismo, desde 1912, e em Pessoa e Sá-Carneiro, as primeiras referências surgem apenas em 1914. Em carta datada de 2 de Setembro de 1914, a Cortes-Rodrigues, Pessoa confessa que descobriu um novo género de paulismo;dois dias depois, fala-lhe dos seus projectos para a realização de uma Antologia Interseccionista; alguns meses antes, em carta datada de 23 de Junho de 1914, Sá-Carneiro despede-se de Pessoa com uma saudação paúlico-interseccionista - «Do seu confrade em paúlismo e lugar Tenente interseccionista». Provavelmente, terá sido através deste intenso diálogo epistolar que estabeleceu com o seu amigo Sá-Carneiro, em Paris, que terá ouvido falar de interseccionismo pela primeira vez, e que terá tido acesso aos Manifestos do Futurismo. A verdade é que enebriado por esta dança dos ismos (como Nuno Júdice já lhe chamou, in A Era do Orpheu, Ed. Teorema, 1986) Pessoa tentava acompanhar a velocidade ísmica em que a vanguarda se multiplicava e, ainda não tendo tido tempo para amadurecer bem o paulismo, o interseccionismo irrompia como a nova possibilidade de acertar o passo com a avant-garde europeia. E assim sucessivamente, com os outros ismos que se iam impondo. Nomeadamente, com o futurismo, afinal o verdadeiro interseccionismo, como rapidamente também se aperceberá, do qual o interseccionismo seria apenas parte desse todo, metonímia dum movimento com uma força arrebatadora que se irá fazer sentir, na sua plenitude, pela voz do Engenheiro Álvaro de Campos.

Quanto a Sá-Carneiro, o seu entusiasmo pelo interseccionismo reflecte-se bem, ao nível da técnica, em poemas como Manucure (1915), poema que ao exaltar toda uma estética cubista e futurista, utiliza a sucessiva e vertiginosa interpenetração de planos, a mistura de sensações e de registos diferentes, que vão desde a situação inicial da vivência de café deste poeta (muito ao gosto dos poetas de Orpheu)que lima o seu tédio enquanto vai polindoas suas unhas, até às encenações mais ousadas e hilariantes da aventura de uma nova beleza que, em mutações apoteóticas, canta a liberdade das palavras e da imaginação. Assim, o grito conhecido do poeta, formulado ao longo deste poema, «– Sim!- meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas, - /Não param de fremir, de sorver e faiscar –» denota bem o hibridismo de ismos que se fazia sentir por esta altura, quer em Sá-Carneiro, quer na maior parte dos órficos, em geral.

No entanto, o interseccionismo, em Sá-Carneiro, muito em particular, mais até do que em Pessoa, fez-se sentir de um modo muito intenso, não tanto ao nível de uma técnica ou estilo a experimentar, mas sobretudo, ao nível da fragmentação do eu, em permanente intersecção com um outro, exemplarmente enunciado e sintetizado no poema 7, publicado em Orpheu I: «Eu não sou eu nem o outro,/Sou qualquer coisa de intermédio:/Pilar da ponte de tédio/Que vai de mim para o outro». Aqui, o interseccionismo é já um modo de ser e de sentir, mais do que uma moda ísmica a seguir, pelo que ele acusa essencialmente da cisão ontológica inerente à poética de Sá-Carneiro, o drama nunca resolvido de um eu que se sente absolutamente interseccionado por um outro, ao qual estará para sempre, e irremediavelmente, ligado por essa ponte de tédio, por essa incapacidade de libertação quer do eu-passado, quer do salto (mortal?) para um eu que se deseja mais belo e mais perfeito. Este interseccionismo ontológico, ou esta alteridade fracassada, está bem presente também na prosa de Sá-Carneiro, muito em particular, em alguns dos contos de Céu em Fogo, nomeadamente em «Eu-Próprio o Outro», assim como na narrativa A Confissão de Lúcio. Aqui, nestes textos, o interseccionismo é levado às últimas consequências, já não de todo entendido e exercitado como uma espécie de pastiche, texto escrito à la maniére de alguns princípios da vanguarda, como no poema Manucure, mas como um diálogo interior entre as várias vozes de um eu, vozes que também em planos oblíquos, zurzem aos ouvidos e à alma deste poeta e o fazem vibrar e rodopiar por inúmeras intersecções, planos não menos fragmentados e resvalantes de um eu em permanente dispersão.

Deste modo, podemos considerar vários níveis de interseccionismo seguidos pelos nossos poetas de Orpheu. Num primeiro patamar, o nível do estilo e da técnica perseguidos quer pela pintura, de Santa-Rita Pintor, por exemplo, quer pela poesia, de Chuva Oblíqua de Pessoa ou de Manucure de Sá-Carneiro. Num outro nível, temos o interseccionismo heteronímico ou quasi heteronímico, bem visível nas múltiplas  interpenetrações de planos entre o eu e outros de si mesmo, exemplarmente criado e desenvolvido por Pessoa e por Sá-Carneiro, se bem que em níveis de despersonalização completamente diferentes. Ainda a um outro nível mais geral, o interseccionismo, tal como foi teorizdo pelos futuristas italianos (por Marinetti e por muitos dos manifestos da pintura futurista) e, entre nós, por Fernando Pessoa, em muitos fragmentos de textos que nos deixou, por vezes muito esquemáticos mesmo, outras, um pouco mais desenvolvidos, onde tenta classificar as várias artes (literatura, pintura, música) através de sucessivas intersecções de planos do objecto com a nossa sensação, do físico com o psíquico, do espaço com o tempo e a ideia. Aqui se esboçava também a grande inovação do pensamento modernista de Pessoa, quando o surpreendemos reflectir e tentar esquematizar o seu projecto interartes, dando uma continuidade teórica a alguns dos projectos concretizados por outros modernistas, do diálogo entre pintura e literatura, nomeadamente, pelos quadros-poemas realizados em conjunto por Almada Negreiros, os Delaunay, Blaise Cendrars e Apollinaire. Deste modo se percebe o quanto esta tentativa de interdisciplinaridade, diríamos hoje, foi útil a Pessoa e a toda esta geração modernista: ela permitiu alargar o próprio conceito de intersecção a outras áreas, a outros planos, níveis ou graus, onde também as várias artes se encontram e se fundem num mesmo ponto de intersecção (mesmo que depois, rapidamente, se afastem) e, sobretudo, onde a complexidade de sentir e de pensar se interpenetra para se transcender e prolongar no tempo de sucessivas cadeias analógicas que se podem desenvolver até ao infinito.

Talvez por todas estas razões já apontadas, e por muitas outras que certamente faltam, o interseccionismo, mais do que como ismo ou corrente literária redescoberta pelos nossos poetas e artistas plásticos de Orpheu, teve uma importância decisiva pelo que contribuiu para o exercitar de um pensamento estético que começava a abandonar uma visão da arte autista, por assim dizer, apenas virada para dentro das suas próprias fronteiras, estática no espaço da sua individualidade, para se abrir ao diálogo possível entre as várias artes, ao movimento da complexidade do mundo e do sonho, à fragmentação dos vários planos desviados do eu e do outro. Neste sentido, compreende-se também melhor a dificuldade de separar e distinguir o interseccionismo do cubismo e do futurismo. Dificuldade também sentida por Pessoa e Sá-Carneiro, muito em particular, que logo se apercebem da velocidade com que este ismo lhes começa a fugir das mãos e a transfigurar-se, para logo se confundir, com o futurismo e, numa fase derradeira da nossa vanguarda modernista, com o sensacionismo que se irá impôr como uma espécie de salvação, solução ideal para a uniformização deste hibridismo órfico. Assim se justifica também o descrédito, por parte de Pessoa, manifestado a Cortes-Rodrigues, em carta datada de 4 Janeiro de 1915, pelos dois primeiros ismos que fundou: o paulismo e o interseccionismo. De facto, seria o sensacionismo que começava, então, a teorizar que o iria interessar, doravante, com maior intensidade. Criados os heterónimos, seria no sensacionismo que Pessoa iria encontrar um suporte teórico muito mais cómodo para uma nova arrumação dos seus diferentes modos de sentir e de pensar e, ainda, uma resposta mais aprazível para um modernismo que, rapidamente se percebia, não era de todo linear e tranquilo, nos díspares estímulos que provocava nos seus jovens poetas e artistas plásticos. Para além disso, ele próprio, Fernando Pessoa, sentia cada vez mais a dificuldade em se arrumar e classificar, mesmodentro dos seus vários heterónimos. Assim, em alguns dos inúmeros esboços e projectos que se encontram no seu espólio, podemos acompanhar estas várias hesitações do poeta dos heterónimos, nomeadamente, quanto à atribuição de alguns dos seus textos a diferentes seres de si próprio, certamente, numa fase inicial em que cada um deles não estaria ainda totalmente definido. Por exemplo, na mesma carta já citada a Cortes-Rodrigues (de 15 Janeiro 1915) Pessoa atribui, momentaneamente, o poema Chuva Oblíqua a Álvaro de Campos, mudança radical, como sabemos que virá a ocorrer depois, provavelmente, nas vésperas da publicação de Orpheu (1 ou 2) onde o poema já surge definitivamente assinado por F. Pessoa ortónimo e Álvaro de Campos, já com contornos mais bem definidos, como discípulo de Walt Whitman e de Marinetti, se estreia com as duas grandes odes, a Trinfal e a Marítima, já em pleno estilo futurista. Assim também estaria o interseccionismo a começar a ser assimilado não como uma corrente com possibilidades de continuar autonomamente, mas como uma das dimensões do sensacionismo, como a tomada de consciência de que cada sensação, era na realidade, um mescla oblíqua de outras sensações, uma intersecção continuada do tédio, melancolia e náusea (neo-simbolista), sentidos pelo poeta, com a euforia e o sonho (vanguardista) da construção de uma nova beleza (não-aristotélica) em devaneios latejantes.

 

 

Bibliografia:

Costa, Paula Cristina L. (Igreja), As dimensões artísticas e literárias do projecto sensacionista, Dissertação de Mestrado apresentada à FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 1990.

Pessoa, Fernando, Correspondência (1905-1922), (Edição de Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

Sá-Carneiro, Mário, Cartas a Fernando Pessoa, (Edição de Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

Paula Cristina Costa