(1880 – 1918)

João Lúcio Pousão Pereira, sobrinho do pintor Henrique Pousão, nasceu e faleceu Olhão, na mesma vila, onde viveu sempre, salvando o lustre que passou em Coimbra entre 1898 e 1903, aí se formando em Direito e aí publicando o seu primeiro livro, Descendo (1901). A sua estreia aos vinte anos, composta por vinte longas composições, autênticas cataratas de alexandrinos em dísticos bem desenhados, representou, pela invulgar sobrecarga imaginativa, que se traduziu por uma novidade metafórica surpreendente, um ponto de viragem na poesia portuguesa de então.

João Lúcio mostra uma consciência poética mais pessoal que a dos seus companheiros de geração, presos ainda à vulgata sentimental neogarrettista ou ao aguarelismo coloquial de Cesário. Nenhum poeta da época – Guedes Teixeira, Augusto Gil, Lopes Vieira, Correia de Oliveira ou Pascoaes – escapou a esses modelos; o Descendo de João Lúcio foi o primeiro livro a fugir à vulgarização galopante de Nobre ou de Cesário, mostrando uma poesia abstracta, densa, metafísica, sem referencialidades conhecidas. O seu gosto abissal, a sua ardência imaginativa, o seu sentido da mobilidade das formas e a sua ideia de metamorfose transfiguradora fazem desse livro aquele que na verdade abriu em Portugal, no século XX, as portas da poesia. É nele que se devem procurar as fontes mais genuínas do saudosismo imediato de Pascoaes e de tudo aquilo que na poesia portuguesa posterior, e tanto foi, se identificou com a liberdade imaginativa, o clima de delírio, a marca onírica e a demência torrencial das visões.

Durante a sua curta vida publicou ainda João Lúcio dois outros livros, O Meu Algarve (1904) e Na Asa do Sonho (1913), que dão seguimento à sua poética visionária e ardente. No primeiro, o que se encontra não é nem fotografia realista nem construção naturalista, mas realidade visível elevada, pelos sais de prata da poesia, à condição de supra-realidade invisível; no segundo, a poética órfica das catábases ou da descida aos infernos do seu livro de estreia, limpa de qualquer outra interferência emocional, efectiva-se com uma pureza surpreendente, dando lugar a um livro poderoso e perfeito, todo ele construído numa exigente saturação dos anteriores processos do autor. Depois da sua morte, foi publicado um quarto livro, Espalhando Fantasmas (1921), que não arrefece a atmosfera da sua poesia anterior, mau grado os poemas finais em borrão.

O autor viveu retirado nas areias meridionais de Portugal, entregue à composição das suas sinestesias, na atonia quase absoluta do movimento literário do Portugal do seu tempo; foi um eremita e um contemplativo como se tira da casa que mandou construir à beira mar, no isolamento de um pinhal. Não espanta pois o desconhecimento em que a sua poesia viveu, sem crítica e sem público. A excepção foi Teixeira de Pascoaes que com ele conviveu em Coimbra e aí assistiu ao desabrochar da singularidade do seu génio. Com a fundação da Renascença Portuguesa e o alargamento da esfera do saudosismo, Pascoaes preocupou-se em trazer João Lúcio para dentro do movimento, conseguindo a sua colaboração para a revista A Águia (nº 33, Setembro, 1914). Não o citou nas conferências-manifestos, mas em Os Poetas Lusíadas compara-o a Camões, Frei Agostinho e Antero. Mais tarde, já nos meses finais da vida, elegeu-o como o seu único grande contemporâneo, escrevendo sobre ele um texto capital, João Lúcio. A poesia de João Lúcio é uma daquelas que um estreito e redutor entendimento do modernismo enterrou num injustíssimo e escandaloso esquecimento.

 

Bib: CAVACO, Edgar Pires, João Lúcio. Do Imerecido Esquecimento ao Ignoto Desconhecimento [policopiado com preciosa recolha de inéditos em livro de João Lúcio], Évora, Universidade de Évora, 2005; FRANCO, António Cândido, “Apresentação da Poesia de João Lúcio”, in Poesias Completas [com marginália crítica onde se pode encontrar vasta bibliografia sobre o poeta; reproduz na íntegra o texto de Pascoaes], João Lúcio, Lisboa, IN-CM, 2002, pp. 7-24.

 

 

 

António Cândido Franco