(1883 – 1936)

Leonardo José Coimbra fez parte do grupo que promoveu no início do século XX na cidade do Porto um conjunto de destacadas iniciativas pedagógicas e culturais, entre elas, a publicação em 1907 da revista libertária Nova Silva, a fundação dos Amigos do ABC, a criação em Dezembro de 1910 da revista mensal A Águia, a fundação em 1911 da Renascença Portuguesa e em 1912 da Universidade Popular do Porto. Leonardo Coimbra, depois de passar pelo curso de Ciências Físicas e Matemáticas da universidade de Coimbra e pela Escola Naval, era ao tempo da crise académica de 1907 estudante na escola politécnica do Porto, tornando-se um dos “intransigentes” da academia portuense que se recusou a requerer matrícula e a realizar exames. Casou nesse ano, mudando-se para Lisboa, onde em 1910 terminou a licenciatura no Curso Superior de Letras, ingressando então como professor no Liceu Central do Porto, depois Rodrigues de Freitas.

É a época da criação da revista A Águia e da fundação da Renascença Portuguesa. O novo regimen, atento às suas qualidades de orador, reveladas na crise de 1907, fiado ainda na adjacência das suas convicções políticas, mais libertárias todavia que republicanas, convida-o para o cargo de administrador do concelho da Maia, lugar que para bem dizer não exerceu pois preferiu à administração o magistério inovador no Rodrigues de Freitas e no Colégio dos Órfãos, em Braga, onde se opôs veementemente aos maus tratos físicos, mostrando-se um pedagogo enérgico e magnânimo, de ideias inovadoras. O interesse pela educação vinha dos artigos publicados em revistas anarquistas, tendo sido então um dos que levantaram a voz contra a morte de Ferrer, e foi depois a trave que lhe estruturou a intervenção cívica. A revista A Águia foi-lhe nesse aspecto um termo privilegiado de crescimento e afirmação, como se vê pelos artigos que publicou logo na sua primeira série.

Preparou por esse tempo a dissertação com que se apresentou a concurso para  professor assistente do grupo de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.  A dissertação deu origem ao seu livro de estreia, O Criacionismo (Esboço de um Sistema Filosófico) (1912), e o concurso a um artigo confessional publicado em A Vida Portuguesa (nº6, 16.1.1913), “Porque Abandonei o Concurso”, em que justifica a sua desistência e a desavença com Silva Cordeiro, presidente do júri que examinou o trabalho de Leonardo Coimbra.

O criacionismo surge em 1912 como um pensamento vivo, livre, dinâmico, aberto a todas experiências, adverso a um conhecimento fatalista e dogmático. Repugnava a Leonardo fechar o real, fosse ele moral, social ou físico, numa visão determinada e acabada, produto apenas de uma faculdade humana particular. O criacionismo mostra assim um aspecto individual, metamórfico, plástico, em que o real aparece menos dependendo de si do que da liberdade criadora do homem e da mulher. Daí a atenção às formas poéticas, que aparecem aos olhos de Leonardo como operações criacionistas sem mácula, e daí ainda a frase lapidar do seu sistema, “o homem não é o herdeiro de um mundo feito; é o obreiro de um mundo a fazer”, onde se cheira o humanismo libertário que marcou a formação inicial do pensador e do qual, apesar das mudanças, nunca se libertou.

A 4 de Março de 1913, Fernando Pessoa informou por carta Álvaro Pinto estar a ler O Criacionismo. Pouco depois, Fernando Pessoa escreve a Leonardo Coimbra uma curta mas significativa carta de dois parágrafos, na qual lhe agradece comovidamente a oferta do opúsculo A Morte, editado pela Renascença Portuguesa, que fora conferência no Centro Comercial do Porto na noite de 23 de Julho de 1913, e se refere à sua “obra-base”, O Criacionismo, dando-lhe conta das suas impressões de leitura. Escrita numa época em que cresciam as tensões entre Pessoa e a Renascença, que levariam à ruptura de 12 de Novembro de 1914, a carta não pode ser porém mais isenta e limpa. Aí se pronuncia sobre a obra de Leonardo do seguinte modo: Logo de princípio notei, através da aparente e ilusória analogia do seu sistema com os de alguns filósofos recentes, a sua íntima e real originalidade. E nunca haverá em mim entusiasmo que eu sinta que me baste perante o panorama de alma que é a sua obra. O abarcar tanto com a inteligência, o descer tão fundo no sentido possível das coisas – tudo isso representa em Portugal uma novidade para ser acolhida com uma alegria estremunhada. À parte desacordos de ponto, que existiram, trata-se de indiscutível testemunho de larguíssima e rara admiração.

Em 1914, Leonardo Coimbra filia-se no Partido Democrático de Afonso Costa, que, depois das cisões de António José de Almeida e de Brito Camacho em 1912, era o herdeiro da organização e dos pergaminhos do vetusto Partido Republicano Português, fundado em 1876. A filiação serviu-lhe para alargar o campo das suas realizações educativas. Ocupou a pasta da Instrução no curtíssimo governo anti-sidonista de Domingos Pereira, entre Março e Junho de 1919. Apesar da reduzida duração do executivo, a obra de Leonardo como Ministro foi anormalmente vasta. Criou as Escolas Primárias Superiores, deu ao Porto a sua primeira Faculdade de Letras, remodelou o Conservatório de Lisboa, reformou o Teatro Nacional e a Biblioteca Nacional, criou novos cursos na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra e na Escola Normal do Porto, alargou o serviço social escolar, atacou o espírito arcaico e autoritário a Universidade de Coimbra.

Dessa vasta actuação, ficou sobretudo a Faculdade de Letras do Porto, que estreitou laços com a Renascença Portuguesa, tornando-se no fecundo viveiro que prestou valioso serviço à sociedade cultural portuense. A Faculdade de Letras do Porto, dirigida por Leonardo Coimbra, tornou-se numa escola inovadora, livre, aberta, fruto de um homem que temperara as suas ideias pedagógicas na insurreição dos “intransigentes” de 1907 e na vasta experiência inovadora dos pedagogos libertários do princípio do século XX. A escola contrastou vivamente com o restante ensino universitário português da época, dominado pela arrogância, a prepotência e a pedagogia retrógrada. Nela leccionaram professores liceais, e até autodidactas, sem graus académicos ou escolares, como Teixeira Rego (1881-1934), e dela saiu um rico escol de pensadores livres, com perfil próprio, como Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, José Marinho e Sant’Anna Dionísio. A orientação didáctica da escola era o diálogo; por isso as aulas eram vistas como momentos de convívio, tertúlias, que muitas vezes chegavam a ter lugar nos cafés do Porto frequentados por Leonardo, do Excelsior ao Magestic. A ditadura militar não suportou uma experiência assim irreverente e singular e a Faculdade foi juridicamente extinta em 1928, fechando portas no final do ano lectivo de 1931, já com Salazar no governo.

Leonardo regressou à pasta da Instrução no executivo democrático de António Maria da Silva, em Novembro de 1922. Sem embargo da sua orientação anti-clerical, inconformado com a intolerância religiosa, pretendeu suspender a proibição da educação religiosa nos estabelecimentos privados de ensino, no que contou com o apoio de Raul Proença e António Sérgio, mas teve contra si o grupo parlamentar do seu partido, que impugnou por inconstitucional a proposta. Em resposta, Leonardo pediu a demissão, afastando-se da vida política do partido e regressando à Faculdade de Letras do Porto e à direcção de A Águia. Seguiu todavia com simpatia a experiência governativa de José Domingues dos Santos, que recolheu no final de 1924 o apoio do anarco-sindicalismo operário, aderindo ao novo partido republicano, a Esquerda Democrática, que este político criou em Agosto de 1925 depois de expulso do Partido Democrático. Foi no congresso do novo partido, em Abril de 1926, que Leonardo Coimbra apresentou o seu texto mais sólido, mais pensado, mais maduro sobre o ensino e a educação em Portugal, O Problema da Educação Nacional, dado depois à estampa em livro.

Na parte final da vida, poucos dias antes de sucumbir num inesperado acidente de automóvel, Leonardo converteu-se ao catolicismo, recebendo a eucaristia das mãos do padre Cruz. Aceite-se esta conversão dentro da razão atenta que era própria ao pensador, quer dizer, como experiência, e veja-se nesse transe todo o seu esforço em aprofundar até ao inaudito o seu primitivo impulso libertário, onde a liberdade vivia paredes meias com o amor. Registe-se por fim que Leonardo é, logo depois do “Aristóteles português”, o conimbricense Pedro da Fonseca, o pensador de língua portuguesa mais comentado e estudado.

 

Bib: PATRÍCIO, Manuel Ferreira, A Pedagogia de Leonardo Coimbra, Porto, Porto Editora, 1992; PIMENTEL, Manuel Cândido, A Ontologia Integral de Leonardo Coimbra, Lisboa, IN-CM, 2003; PINHO, Arnaldo Cardoso, Leonardo Coimbra–Biografia e Teologia, Porto, Lello Editores, 1999.

 

 

 

António Cândido Franco