Esse é um artigo de reflexão política publicado como “página livre” em Eh Real! e incluído em Fernando Pessoa, Crítica. Eh Real!é um “panfleto semanal de crítica e de doutrinação política”, como se indica em sub-título, lançado em 1915 e dirigido por João Camonezas. O seu primeiro e único número sai a 13 de maio, véspera do dia em que ocorreu o golpe que pôs fim à ditadura de Pimenta de Castro, e manifesta a rejeição à República decorrida até a ditadura desse governante bem como ao regresso à Monarquia, que considerava insinuado, mesmo franqueado, durante o exercício daquele governante e defendida pelo Integralismo Lusitano. Nesse número, destaca-se, do ponto de vista do interesse literário, apenas o artigo “O preconceito da Ordem”, de Fernando Pessoa, que, entretanto, tem a sua importância minimizada por ser publicado no mesmo ano de Orpheu – os números 1 e 2 dessa revista saem em março e junho, respectivamente.

“O preconceito da ordem”, inserido numa revista claramente de doutrinação política, é uma evidência tanto da intensa atividade cívico-política das primeiras décadas do século XX como da formação e paixão políticas de Fernando Pessoa, manifestas nos muitos textos que escreveu acerca do referido tópico. Nele, o autor critica nomeadamente o “preconceito comtista da ordem”, uma vez que se caracteriza por propor uma “sociedade absolutamente nivelada, de onde não possam emergir valores nem aristocratas”. Se concebido na conjuntura neo-monárquica, o malefício, segundo Pessoa, será ainda maior, pois se entenderá a ordem apenas no sentido em que as orientações e manifestações sociais sejam ordeiras. Conseqüentemente, os partidos políticos, ao formular o seu programa, teriam de se preocupar igualmente com a teoria política e com a ordem. Para Fernando Pessoa, essa excessiva preocupação com a ordem levaria a um fim trágico (e único possível): a anarquia social. Como considera a ordem um “estado” e não uma “cousa”, julga que a ordem resulta do bom funcionamento do organismo social: se a sociedade dá por falta da ordem é porque já não está organizada e não trabalha como deveria; procurá-la ávida e enfaticamente indica que o espírito coletivo está doente. O autor observa que a constante preocupação com a ordem apareceu “num período perturbado e anormal da política francesa e em plena vigência da doença chamada romantismo”. Se assim o é, trata-se, então, de reconhecer que o Portugal coetâneo, quer quanto à intensa busca pela ordem, quer quanto ao que mantém ou retoma do ideário romântico, está doente e que as suas estruturas sociais deixaram de funcionar como deveriam.

Fernando Pessoa segue, em “O preconceito da ordem”, a mesma orientação que norteou os artigos dos outros colaboradores deste único número de Eh Real!: ataca os partidos de direita e a sua doutrinação ideológica, sem, contudo, apresentar doutrina que possa substituir aquela ou alterar o estado de coisas.  A leitura crítica deste texto pessoano não pode ignorar que, em intervenções de cunho político posteriores, Pessoa defendeu o monárquico Paiva Couceiro (atacado por outros colaboradores de Eh Real!) e que Mensagem (1934) não somente apresentou como um dos temas fundamentais o sentimento nacional, manifesto na mitologia do passado heróico e no anúncio do Quinto Império, como também foi incorporada à ideologia salazarista – eivada de nacionalismo e de maurrasianismo (movimento político monarquista e contra-revolucionário nascido na França na última década de Oitocentos).

 

BIBLIOGRAFIA: Eh Real!, número 1, 1915 (edição facsimilada, Lisboa, Contexto Editora, 1983); Manuel Villaverde Cabral, “Fernando Pessoa e o ’14 de Maio’”, in Eh Real!, edição facsimilada, Lisboa, Contexto Editora, 1983, pp. V-XV; Portucale, 2ª série, número 23-24, 1949, pp. 189-190; Daniel Pires, Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do século XX, Lisboa, Contexto Editora, 1986.

 

Annie Gisele Fernandes