Deveríamos, em abertura, começar por lembrar a definição que, em 1965, Almada deu do Modernismo: «o encontro entre as letras e a pintura». Foi o seu caso, com mais dois nomes paradigmáticos, Santa Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso. No princípio dos anos 10, Guilherme de Santa Rita, que em breve mudaria o nome para Santa Rita Pintor, Mário de Sá-Carneiro, Amadeo ou José Pacheco, todos tendo vivido por mais ou menos tempo em Paris, interessam-se pelo Cubismo, Futurismo e as formas mais importantes da Vanguarda, trazendo depois para Portugal informações e experiências. A importância dessa associação vê-se desde logo no fundador gesto plástico do Orpheu 2 e desde início no 2 da capa, e repercute-se, ainda, na presença programada das reproduções interseccionistas de Santa Rita Pintor no corpo da revista.

Em 1916, Almada Negreiros e Santa Rita Pintor fundavam o Comité Futurista de Lisboa. O Portugal Futurista em 1917 incluiria dois artigos sobre Santa Rita Pintor, que aparece como figura central desse Futurismo português, não sem razão, porque ele mesmo traduzira o Manifesto de Marinetti que publicou no jornal O Açoriano Oriental pouco depois, constituindo este um dos primeiros sinais de recepção do Futurismo em plano Europeu. O primeiro desses dois textos aparece logo destacado a abrir o número, e vem ilustrado com uma fotografia sua de página inteira a que voltaremos.

Mas dois anos depois, em 1918, morre Santa Rita Pintor (que pede ao irmão para queimar os seus quadros). E nessa perda se perdeu com ele quase todo o pouco Futurismo que realmente tivemos nas artes, ficando a Pessoa o principal da sua definição para a literatura e, mais lateralmente, para Almada, cujo génio juvenil o Futurismo entusiasmava ainda por esses anos, sobretudo pelo sentido de provocação mais do que por um programa consequente como seria, ao que deixou, o de Santa Rita cujo gesto antecipava já um qualquer bizarro furor dadaísta, mesmo se este ainda não se fizera como tal no Cabaret Voltaire em Zurich.

O Futurismo português, que assim compreenderemos como mais mítico ou lendário do que realizado em obras relevantes no campo da arte,  ao menos que tenham ficado (já que as de Santa Rita desapareceram, bem como muitas de Amadeo, ao que consta destruídas por familiares) começara "em espírito" logo após o escandaloso sucesso suscitado em Paris pelo grupo de Marinetti, com a edição do seu Manifesto no Figaro, em 1909, mas essa nova sensibilidade não encontrou repercussão vísivel em Portugal, se exceptuarmos o interesse e atenção que, logo em 1912, mereceu ao então jovem bolseiro Santa Rita Pintor, frequentador assíduo das conferências do futurista italiano em Paris que, em 1914, após ter contactado com o agitador cultural italiano, se propôs traduzir as suas obras para português, enquanto desenvolvia uma obra plástica em que predominava a influência das formas futuristas à mistura com alguns ecos de raíz cubista.

Foi pois na literatura que o futurismo teve, em Portugal, existência mais plena: a Ode Triunfal - que Fernando Pessoa enquanto Álvaro de Campos escreveu em 1914 -, constituiu, de facto, o primeiro momento de estética futurista autenticamente portuguesa. E depois de Pessoa, já em 1915, mas ainda debaixo da sua incontestada influência, essa atitude foi continuada nos dois números de Orpheu - uma vez que o terceiro ficou para sempre adiado -, onde devem ser assinaladas as contribuições de Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, José Pacheko (a quem se deve a capa ainda de gosto simbolista do primeiro número) e do próprio Santa Rita Pintor, a quem o segundo Orpheu fazia justiça reproduzindo as referidas obras.

Outros foram os poetas que aderiram ao movimento mas, no que diz respeito à arte, tinha de facto razão Santa Rita quando se afirmava o único "Futurista declarado em Portugal". Foram porém contraditórios, em termos de atitudes, os cinco breves anos de cintilação futurista portuguesa, como o atesta, por exemplo, o facto de José Pacheko - ligado como vimos aos futuristas e aos modernistas, nomeadamente ao grupo de Orpheu -, ter sido simultaneamente director artístico da revista monárquica A Ideia Nacional, que considerava os futuristas como "fautores da desordem e da revolução (...) sem fé nem pátria". Declarações a que o não menos monárquico Santa-Rita responderia, em protesto consequente, proclamando o carácter nacionalista da doutrina estética que tão vivamente professava, e por aí se defendendo, evitando estranhamente a polémica no campo das ideias, domínio em que se queria, afinal, exímio. Contradições que, diferentemente embora, se atestavam na confessada antipatia que nutria, para com Santa Rita, o genial Mário de Sá Carneiro - cuja família financiara Orpheu -, considerando-o "intolerável" e "insuportavelmente vaidoso" em cartas dirigidas a Pessoa desde Paris. E em cuja personalidade se basearia, de resto, para a criação de uma estranha personagem da sua novela A Confissão de Lúcio, ao mesmo tempo que lhe dedicava um dos seus mais admiráveis poemas, Manucure.

Foi em 4 de Abril 1917, numa sessão futurista que teve lugar no Teatro República, em Lisboa, que os futuristas portugueses se apresentaram pela primeira vez em conjunto diante do público através de atitudes, discursos e proclamações. Declarações de teor irracionalista em que, lado a lado com atitudes revolucionárias, Santa Rita Pintor clamava, delirantemente, pela necessidade de reinstauração da monarquia e da inquisição. Foi, uma vez mais, ele quem, pouco tempo depois desta sessão, esteve por trás do número único da revista Portugal Futurista, de notáveis qualidades, por certo, e da maior importância no contexto da cultura portuguesa da época, mas que sobretudo lhe serviu para se enaltecer a si mesmo, reproduzindo obras de sua autoria ou publicando textos apologéticos, como o que era assinado por Raul Leal (outro dos de Orpheu ).

Além de publicar uma fotografia sua, de página inteira, e de grande sentido provocador, que abria o número com a qualidade de um verdadeiro manifesto em imagem. Curiosamente, foi nas páginas de Portugal Futurista que, ao lado de colaborações diversas - entre as quais se devem salientar as de Blaise Cendrars e Apollinaire -, viria a ser publicado o que foi o mais lúcido e coerente manifesto futurista escrito em Portugal, nos termos de um "Mandato de despejo aos Mandarins da Europa". O seu autor, Fernando Pessoa, uma vez mais mascarado sob o heterónimo Álvaro de Campos fazia assim uma glosa da provocação atentatória dos cânones vigentes na Instituição literária própria dos manifestos do futurismo europeu mais ousado.

Este primeiro número da revista, de resto, viria a ser  imediatamente apreendido pela polícia, não por acaso breves dias antes da instauração da ditadura de Sidónio Paes, por quem o mesmo Fernando Pessoa, contraditoriamente também, nutria entusiástica simpatia. Mas o texto radical de Pessoa/Álvaro de Campos, de seu título Ultimatum, depois de provocadoras invectivas contra autores tão diversos como George Bernard Shaw, Rudyard Kipling, Chesterton, D´Annunzio ou Maeterlinck, então os autores finisseculares europeus mais em voga, contra os políticos e os programas de acção nacional daquilo a que chamava a "Lilliput - Europa", a quem invectivava a passar por baixo do seu desprezo, proclamava que "a Europa tem  sede de que se crie, tem fome de futuro"; que "a Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Matéria caótica"; que "a Europa está farta de não existir ainda! Está farta de ser apenas o arrabalde de si própria! A Era das Máquinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!". Para logo em seguida afirmar "Eu, da Raça dos Navegadores (...) da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!", e proclamar um programa de acção que assentava primeiramente naquilo a que chamava "A Lei de Malthus da Sensibilidade" em que se defendia a necessidade da adaptação artificial como acto de cirurgia sociológica. Ou, ainda, que na passagem "a intervenção cirúrgica anti-cristã", propunha a abolição do "dogma da personalidade", que explicava do seguinte modo: "para o auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o que, com mais verdade, possa dizer "eu sou eu"; para a ciência, o homem mais perfeito é o que, com mais justiça, possa dizer "eu sou todos os outros". E continuava: "Devemos pois operar a alma, de modo a abri-la à consciência da sua interpenetração com as almas alheias, obtendo assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, do Homem-Síntese da Humanidade". Ao que se seguia a descrição dos resultados que esta operação poderia ter em política, arte e filosofia; a criação de uma superfilosofia, de uma super-arte, de um super-homem, em suma. Manifesto, ainda, em favor da abolição "do preconceito da individualidade", considerado como outra "ficção teológica", segundo a qual "o maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção  grosseira de que é uno e indivisivel". Do que resultaria a "abolição total da Verdade como conceito filosófico, mesmo relativo ou subjectivo. Redução da filosofia à arte de ter teorias interessantes sobre o Universo". Texto tão soberanamente radical que ia ao ponto de propôr os conceitos de Entre-Expressão para substituir o de Expressão, ou de ciência para substituir o de filosofia, "visto a Ciência ser a Média concreta entre as opiniões filosóficas (...) que é a Média das subjectividades". Manifesto cujos resultados finais, em síntese, conduziriam a uma "Monarquia Científica, anti-tradicionalista e anti-hereditária, absolutamente espontânea pelo aparecimento sempre imprevisto do Rei-Média", "substituição da expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, por a sua expressão por dois poetas cada um com quinze ou vinte personalidade, cada uma das quais seja uma Média entre correntes sociais do momento", para concluir com a proclamação da necessidade "da vinda da Humanidade dos Engenheiros (...) a criação científica dos Super-Homens (...) a vinda de uma Humanidade matemática e perfeita" em que "O Super-Homem será, não o mais forte, mas o mais completo! (...) não o mais duro, mas o mais complexo, não o mais livre mas o mais harmónico!"

Proclamações que o poeta lançava "da barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos fitando o Atlântico e saudando abstractamente o infinito". A repercussão deste texto, de eco stirnereano ou nietzscheano, genial à escala de qualquer literatura da sua época, seria em Portugal nenhuma. Ou antes, seria a própria obra de incomensuráveis proporções que Pessoa deixou (na sua maior parte inédita), escrita sem descanso até à data da morte, em meados da década de 30, que só começou a ser redimensionada na sua importância nacional e internacional muito recentemente. O Ultimatum foi, de facto, fundamental manifesto de uma estética anti-aristotélica, que nem Portugal nem os portugueses cultos estavam capazes de assimilar. Permanece, porém, como um dos mais fulgurantes libelos escritos na Europa desta época. Almada Negreiros, auto-proclamado futurista, para além de alguns dos seus textos, não levaria a cabo uma obra plástica de cunho veradeiramente futurista. Quanto a Amadeo de Souza Cardozo, esse, superiormente distante do que acontecia na cena artística portuguesa - colaborador também, ainda que relegado para segundo plano, de Portugal Futurista -, não renegando a fama de futurista, reclamava-se também do cubismo, do abstraccionismo e de outros ismos, numa diversidade sísmica de interesses (talvez a única, neste campo, susceptível de equivaler as propostas de Pessoa) de que a sua obra realizada entre Paris e a sua terra natal - Manhufe (Amarante) no norte de Portugal - concretizou admirável testemunho nos breves anos que viveu. Em vida, e no país, realizou duas exposições — uma no Porto, outra em Lisboa —, ambas objecto de insultuosas críticas, reaccionariamente incapazes de se aperceberem da singularidade e fulgor da sua obra.

E que fica?

A admirável encenação clownesca que Santa Rita faz de si mesmo nas páginas de Portugal Futurista. Em que em vez de obras prefere a afixação da própria imagem num gesto de irrisão, niilista e cómico que lembra de algum modo o retrato famoso de Duchamp enquanto Rrose Sélavy por Man Ray, mesmo se não é de mulher que aparece travestido, mas de louco, na pobre intimidade do seu quarto atelier. Imagem-performance, ela conduz o Futurismo português para um rasgo que é pré-dadaísta pela atitude e que nem os italianos em paris tinham ousado. Na sua genial identificação do artista com o louco, o que explode é uma sensibilidade que tem a força destrutiva da securização identitária que se lê também no Ultimatum de Pessoa/Campos. O deslocamento para o espaço de uma subjectividade que renega a normopatia e a afirmação radical de uma diferença que, depois, raras vezes se ousou em Portugal até aos Surrealistas a que Mário Cesariny mais tarde daria um cunho neo-dadaísta prévio mesmo ao surto americano do fim da década de 50 que anunciou Fluxus. Nesse auto-retrato de pura provocação, o artista cuja obra é ele mesmo afirma no seu próprio corpo as marcas ambíguas de uma inscrição deste num espaço de clausura, prisão ou manicómio, que projecta o País de então na sua dimensão mais fantasmagórica e claustrofóbica. Espécie de histerização clownesca do corpo que o faz contemporâneo do provocador humor Dada, ele é um dos momentos mais altos do Futurismo europeu, mesmo se tardio em relação com o surto primeiro, mas antecipatório de outros sentidos que o Modernismo em breve tomaria na Europa. Nessa Europa a que Santa Rita, precocemente falecido não haveria de voltar.

 

Bernardo Pinto de Almeida