(1772-1834)

Poeta inglês, autor com William Wordsworth de Lyrical Ballads (1798); de um relativamente reduzido conjunto adicional de poemas que, todavia, o colocam entre os mais importantes poetas modernos; de um texto crucial sobre poética, estética, crítica, e a história da fase inicial, heróica, do chamado Romantismo inglês, Biographia Literaria (1817); e de uma volumosa, dispersa e notável prosa sobre questões teológicas, políticas, filosóficas e literárias.

Pessoa elogia consistentemente os poemas de Coleridge, “The Rime of the Ancient Mariner” e “Kubla Khan” (“A literatura de fantasia, que irrompeu com os transcendentalistas alemães e seguidamente nos 2 grandes poemas de Coleridge” [Páginas de Estética, p. 148].). Num texto de 1915, “Orpheu – Revista Trimestral de Literatura – nº 1”, Pessoa descreve Lyrical Ballads como contendo “dois dos maiores poemas de todas as literaturas, o Ancient Mariner de Coleridge e o Tintern Abbey de Wordsworth” [Crítica, p. 107]. E, se num dos fragmentos de Heróstrato sobre a concisão progressiva que a posteridade impõe à obra dos autores que, todavia, permanecem, Pessoa afirma que, “[d]entro de cem anos”, “as cinquenta [páginas] em que conhecemos Coleridge talvez não venham a ser mais de dez”, este juízo melancólico reflecte apenas um destino que vitima todos os autores. Num outro fragmento do mesmo texto, sobre como pode a inefabilidade ser indirectamente circunscrita, escreve: “Nada que valha a pena exprimir jamais fica por exprimir; isso seria contra a natureza das coisas. Pensamos que Coleridge tinha no seu íntimo grandes coisas que nunca contou ao mundo; no entanto, contou-as no “Mariner” e em “Kubla Khan”, que contêm a metafísica que ali não há, as fantasias que omitem e as especulações que não se encontram em parte alguma. Coleridge nunca poderia ter escrito aqueles poemas se não houvesse dentro dele aquilo que os poemas exprimem, não no que dizem, mas pelo mero facto de existirem” [Heróstrato, pp. 103, 101 (em inglês no original)].           

O uso mais importante de Coleridge na obra de Pessoa é, todavia, o ensaio sobre as circunstâncias da composição de “Kubla Khan”, intitulado “O Homem de Porlock” [Fradique 2, 15 de Fevereiro de 1934 (Crítica, p. 490-2)]. Este “quase-poema”, dada a sua natureza fragmentária, “é um dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa – a maior, salvo a grega, de todas as literaturas”. No seu ensaio, Pessoa segue de perto a narrativa com que Coleridge prefaciou a primeira publicação do poema, instigada por Byron, que venceu o escrúpulo de Coleridge em publicar essa “curiosidade psicológica”, como lhe chama. Vivendo ocasionalmente numa herdade solitária, Coleridge adormeceu “em virtude de um anódino que tomara”. O poema foi composto “em sonho”, surgindo-lhe nessas três horas “as imagens e as expressões verbais que a elas correspondiam”. Desperto, compusera já trinta versos (“linhas” como em anglicismo relativamente atípico Pessoa lhes chama), quando foi interrompido pela visita de um homem vindo da aldeia vizinha de Porlock. Ao retomar a composição, após essa interrupção, “verificou que se esquecera de quanto lhe faltava escrever” para além do “final do poema – vinte e quatro linhas mais”. Aquilo de que dispomos é, pois, de dois fragmentos que constituem o princípio e o fim do poema, “qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mistério que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderá ter sido o enredo”. “O Outro Mundo” descrito “dessa maneira nativa ou com essa sinistra plenitude” é algo de raro. Poe, por exemplo, nunca o atingiu, prossegue Pessoa, pois no que cria, “com toda a sua frieza, alguma coisa resta de nosso, ainda que negativamente”, sendo, por isso, uma alegoria mista, no vocabulário técnico da retórica. No caso de Coleridge, “o que se não sabe o que é decorre em um Oriente impossível, mas que o poeta positivamente viu”. O poema de Coleridge é uma fantasmagoria que excede os limites da arte e do mundo.

A análise de Pessoa centra-se, de seguida, no papel do homem de Porlock que fez abortar o impulso criativo de Coleridge. “Seria por uma coincidência caótica que surgiu esse interruptor incógnito a estorvar uma comunicação entre abismo e vida?” Ou, pelo contrário, esconde essa “coincidência aparente” “qualquer oculta presença real, das que parecem conscientemente entravar a revelação dos Mistérios, ainda quando intuitiva ou lícita”? A alternativa é aqui menos relevante do que a natureza da função desse interruptor incógnito, seja ele caótico ou deliberado, que impede a divulgação do esotérico. Num texto obscuro intitulado “Teoria do Paganismo”, Pessoa descreve Cristo como a representação simbólica do processo – que o Paganismo não pode, ou é incapaz, de contar – “pelo qual a Realidade passou do Caos e da Noite (Destino) para os Deuses” (Textos Filosóficos, II, pp. 96-101). Esta passagem do abismo informe à vida formada é, na narrativa de Coleridge, interrompida. Ocultismo, psicologia e literatura são aqui indistinguíveis. O interruptor incógnito de Coleridge descreve, no que resta do ensaio de Pessoa, a impessoal obstrução interior que acomete todos os poetas e torna todo o poema fragmento ou vislumbre de uma forma plena. A obra de qualquer autor reduz-se necessariamente, conclui Pessoa, a “disjecta membra que, como disse Carlyle, é o que fica de qualquer poeta, ou de qualquer homem”.

 

Bibl.: MONTEIRO, George. Fernando Pessoa and Nineteenth-Century Anglo-American Literature, Lexington: The University of Kentucky Press, 2000; SANTOS, Maria Irene Ramalho de Sousa. “Interrupção Poética: Fernando Pessoa e o «Kubla Khan» de Coleridge” Actas do 2º Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Porto: Centro de Estudos Pessoanos, 1985.     

 

 

António M. Feijó