O que hoje se designa na gíria dos estudos literários portugueses como saudosismo corresponde a uma das tendências fundadoras da Renascença Portuguesa (1911-1932), aquela que teve como mentor Teixeira de Pascoaes (1877-1952); essa corrente foi a que no seio das tensões iniciais da fundação da associação se mostrou melhor apetrechada para catalisar a maioria dos sócios, acabando por emprestar o seu imaginário próprio ao conjunto mais representativo das actividades que marcaram o arranque da associação.
O saudosismo de Pascoaes nasceu com a sua obra poética em verso, a partir da sua estreia com Embryões (1895). Assim como assim, os seus primeiros livros, pouco pessoais, que o autor sentirá mais tarde necessidade de reescrever em profundidade, não são saudosistas. Só com Jesus e Pã (1903) e sobretudo com Vida Etérea (1906) e As Sombras (1907) se pode falar do saudosismo de Pascoaes. Nestes dois últimos livros, o autor abandona a saudade como motivo de superfície e mostra-se capaz de a transformar num lugar retórico de grande visibilidade expressiva e surpreendente efeito textual.
Esta metamorfose da poesia de Pascoaes, a partir da qual Leonardo Coimbra elaborará em 1910 uma terminologia crítica nova, que será aquela que Fernando Pessoa desenvolverá dois anos depois nos textos da Nova Poesia Portuguesa, mostra-se criadora de um novo e poderoso estilo, centrado no paradoxo e na metáfora. Esta revolução poética não pode ser desligada de questões de pensamento, como perceberam os seus dois primeiros críticos. Quer o paradoxo, muito sentido nas simetrias que Fernando Pessoa destacou na “Elegia” de Vida Etérea, “A folha que tombava / era a alma que subia”, quer a metáfora, comutando os termos da matéria pelos do espírito, revelavam no seu íntimo movimento um evolucionismo de tipo metafísico, que encontrava antecedente em certas sequências das Odes Modernas (1866) de Antero de Quental ou nas duas grandes orações de Guerra Junqueiro, praticamente contemporâneas da revolução poética saudosista.
O saudosismo poético de Teixeira de Pascoaes surge assim nos primeiros anos do século XX como expressão inovadora, que criou um modo desconhecido até aí, mas também como expressão onde se reconhece a transformação de todo um trilho da poesia portuguesa imediatamente anterior, do Antero das Odes ao Junqueiro das Orações. Essa mesma riqueza e originalidade de expressão ajudou Pascoaes a esclarecer um pensamento filosófico de tipo libertário, com duas longas exposições em prosa dedicadas ao sentido da vida no jornal anarquista portuense A Vida ( 14 de Julho de 1907 e 18 de Agosto de 1907) e que são contemporâneas das inteligentes e complexas analogias que vertiginosamente desfilam nas misteriosas apóstrofes dos versos de As Sombras.
De qualquer modo, certos aspectos filosóficos do saudosismo só no quadro da proclamação da República e da fundação da Renascença Portuguesa encontrararam terreno favorável para germinarem e frutificarem. Criador de uma nova poesia, cuja primeira expressão foi naturalmente o poema, Pascoaes percebeu desde muito cedo que a sua nova poesia substantiva, a saudosista, tinha em si uma visão atributiva do mundo, em que a poesia se transformava em pensamento poético. A primeira consequência deste trânsito foram as duas longas exposições filosóficas de 1907, que constituíram a estreia de Pascoaes como prosador, estreia que aconteceu num jornal operário anarquista, que todavia parecia tirar o seu nome do tríptico de António Carneiro, “A Vida”, cujo terceiro painel se chamava “A Saudade” (1901); a República, pretendendo renovar as instituições portuguesas, e a fundação da Renascença Portuguesa, almejando dar ao novo regime uma orientação cultural que fosse uma ruptura com os hábitos recentes, prepararam o terreno para a eclosão de um saudosismo que, sem perder a sua qualidade poética, ganhou dimensão social, política e religiosa.
É o que acontece na primeira conferência que Teixeira de Pascoaes fará no Ateneu Comercial do Porto ao serviço da Renascença Portuguesa em Maio de 1912, logo impressa em folheto com o nome de O Espírito Lusitano e o Saudosismo, e que constitui um verdadeiro manifesto do saudosismo como pensamento capaz de dar saída aos problemas mais urgentes do país. Um ano depois, nova conferência-manifesto ao serviço da associação, impressa com o título de O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa (1913), permitiu a Pascoaes explorar em profundidade as questões antes tratadas. Foram estes dois textos que levaram António Sérgio a polemizar com Pascoaes nas páginas de A Águia, numa controvérsia de ideias que ainda hoje está por esclarecer. Em 1914, Pascoaes fará ao serviço da Renascença a sua derradeira conferência-manifesto, A Era Lusíada, a que se junta no ano seguinte Arte de Ser Português, espécie de súmula preparada para divulgar em escala alargada as ideias do saudosismo e que, escrito e pensado para as escolas da República, se destinava a ser um manual cívico, e logo depois, em 1919, Os Poetas Lusíadas.
Que tirar deste conjunto de textos didácticos, a que se deve acrescentar o testamento de ideias de Pascoaes, escrito no ocaso da vida, A Minha Cartilha (1953)? Em primeiro lugar, estes textos, posto que mais poéticos que didácticos, só podem ser compreendidos no seio das ideias avançadas, próximas do anarquismo, em que germinaram e se desenvolveram as primeiras acções do grupo nortenho que em 1911 lançou a ideia da Renascença Portuguesa. Nesse sentido, assinale-se a ágil e muito consequente profissão de fé de Pascoaes no anarco-comunismo nos versículos de A Minha Cartilha, mas também afirmações várias espalhadas pelos textos fortes de 1912-1915. Leia-se por exemplo este representativo passo da sua conferência de 1912: Eu creio que conviria imenso à República e a Portugal, não a separação das Igrejas do Estado, mas a separação de Roma, podendo talvez eliminar-se o alto clero que foi quase sempre uma nódoa estrangeira na nossa Pátria, à semelhança dos políticos. Sente-se a afinidade do pensamento social do saudosismo com o nacionalismo literário da geração de 90, mas muito menos pela via titubeante e reaccionária do neogarrettismo de Alberto d’Oliveira, ou pela via folclorizante do neolusitanismo de Silva Gaio, que pela larga estrada libertária do universalismo situado, de feição esotérica, de Sampaio Bruno.
Em segundo lugar, que o uso e o abuso do epíteto ‘nacionalista’ aplicado ao saudosismo doutrinário da Renascença Portuguesa é falacioso, como se tira da Arte de Ser Português e das duas ideias-chave deste livro – a Humanidade está acima da Pátria e o Homem, vivendo para a Humanidade, é superior ao que vive para a Pátria. Pascoaes aceitava a ideia de abertura da cultura portuguesa ao universal; recusava porém que essa universalização tivesse obrigatoriamente de se fazer pela imitação de modelos estrangeiros; a cópia parecia-lhe sinal de menoridade cultural, se não de colonização mental; preferia por isso seleccionar os momentos criadores da cultura portuguesa, apurando um modelo próprio, capaz de se universalizar e concorrer em pé de igualdade com os modelos das culturas fortes. O saudosismo na sua expressão social, política e religiosa talvez tenha sido apenas isto: a tentativa de pôr cobro à tendência do português para a imitação, que se acentuara de forma caricatural no constitucionalismo da segunda metade do século XIX, substituindo-a por uma nova singularidade criadora, que não desdenhasse porém da possibilidade de assimilar criativamente aspectos superiores de culturas exógenas.
Ao pretender retirar todas as consequências do seu pensamento poético, dando corpo no quadro das actividades iniciais da Renascença Portuguesa a um saudosismo doutrinário, Pascoaes ajudou por outro lado o seu primitivo saudosismo poético a libertar-se de formas exclusivamente líricas, aprofundando uma marcante vertente dramática e dando-lhe uma forma narrativa ampla, cada vez mais universalizante e humana, como se tira da publicação de Marános (1911), marcado por um iberismo dialogante, e sobretudo da poderosa interpretação pessoal da intertextualidade de Regresso ao Paraíso (1912).
Ao mesmo tempo que o saudosismo de Pascoaes se desenvolvia, alargando-se a círculos de acção cada vez mais vastos, a sua revolução poética, criadora de um novo e poderoso estilo, impunha-se aos poetas mais jovens (entre outros, Afonso Duarte, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão, Mário Beirão, Santiago Prezado, Guilherme de Santa-Rita, João Lebre e Lima), reorientava as produções dos poetas imediatamente anteriores, contemporâneos do primeiro Pascoaes (Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira e António Patrício), animava o aparecimento fora da cidade do Porto de novas publicações poéticas (A Rajada e Dyonisos), dava lugar em 1912 e 1913 a uma vasta e muito participada polémica nacional, iniciada nas páginas do jornal lisboeta República e recolhida depois por Boavida Portugal no volume Inquérito Literário (1915), e que é a primeira grande controvérsia literária do século XX português e uma das mais significativas de sempre, onde se defrontaram em duas trincheiras separadas por um fosso intransponível os expoentes da velha geração, de Adolfo Coelho a Júlio de Matos, de Gomes Leal a Gonçalves Viana (este nascido em 1840), e os da nova, de Pascoaes a Cortesão, de Raul Proença a Fernando Pessoa, de António Sardinha a Hernâni Cidade.
A revolução poética do saudosismo criava assim entre 1910 e 1913, pela progressiva propagação e individualização do seu estilo próprio, uma nova escola literária na poesia portuguesa. Esta nova escola, que teve o seu antecedente filosófico em Leonardo Coimbra e o seu desenvolvimento crítico no Fernando Pessoa de 1912, é a primeira do século XX português e dela saíram, por contraposição imediata ou solução de continuidade, todas as mais significativas formas poéticas das gerações seguintes, incluindo o que há em Orpheu de paulista, de interseccionista ou até de sensacionista e de vertiginista. O saudosismo de 1912 foi o bojo expressivo onde todas estas formas estilísticas ensaiaram pela primeira vez a alucinante combinatória da sua existência.
Merece por isso esta nova escola saudosista um lugar de destaque nas histórias da literatura portuguesa no que à modernidade diz respeito, mas que anda muito, muito longe de ter, já que equivocamente classificada como neo-romantismo acaba por ser atirada para a penumbra das coisas vetustas e depreciadas; a ideia de um primeiro modernismo centrado em Orpheu e de um segundo em torno da Presença, entre Lisboa e Coimbra, não se tem mostrado adequada, pelo seu formalismo esquemático (revolução e contra-revolução) e pelo seu exclusivismo fechado (1915 e 1927), a examinar com verdadeiro interesse e isenta imparcialidade a poesia do saudosismo de Pascoaes e da primeira geração de poetas que lhe deu largueza e profundidade e que é pela idade a primeira do século XX português. Assim como assim, a importância fundadora do saudosismo poético é uma das linhas de força que, do nosso ponto de vista, justifica aquela incómoda e pessoalíssima apreciação que Mário Cesariny fez em 1972 ao considerar Teixeira de Pascoaes um poeta bem mais importante que Fernando Pessoa.
Bibl.: BOTELHO, Afonso, Da Saudade ao Saudosismo, Lisboa, ICALP, Biblioteca Breve, 1990; FRANCO, António Cândido, Transformações da Saudade em Teixeira de Pascoaes, Amarante, Edições do Tâmega, 1994; O Saudosismo de Teixeira de Pascoaes, FRANCO, António Cândido, “Prolegómenos do Saudosismo de Teixeira de Pascoaes”, prefácio aTeixeira de Pascoaes, Belo, À Minha Alma, Sempre, Terra Probida,Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, pp. 7-50; GUIMARÃES, Fernando, Poética do Saudosismo [com documentos, textos teóricos e antologia poética], Lisboa, Editorial Presença, 1988.
António Cândido Franco