(1788-1860)

À excepção de Friedrich Nietzsche, nenhum outro filósofo alemão influenciou a produção literária e artística na Europa de uma forma tão intensa como Arthur Schopenhauer (1788-1860). Assim, impressionantes elogios póstumos estão presentes por exemplo nas obras de Richard Wagner, Leo Tolstoi, Samuel Beckett, Albert Einstein, Kurt Tucholsky, Thomas Mann, Hermann Hesse, Sigmund Freud ou Wilhelm Busch.

Alguns vestígios de uma influência notável encontram-se também na obra de Fernando Pessoa, cuja leitura de Schopenhauer é marcada sobretudo por dois aspectos. O primeiro aspecto prende-se com uma influência indirecta que se revela numa constelação que Nietzsche designou em 1874 com a descrição “Schopenhauer como Educador”. Nietzsche estabelece neste texto uma diferença entre o homem de Rousseau, de Goethe e finalmente o homem de Schopenhauer. O homem de Rousseau significa, neste contexto, a grande massa das criaturas humanas que se sentem oprimidas e corrompidas pelas algemas da sociedade. Este homem encontra a sua salvação apenas no evangelho da natureza e declara só o homem natural como verdadeiramente humano. O homem de Goethe é a imagem do Fausto como viajante do mundo. Este homem peregrina pela vida inteira, ele é um observador incansável de todos os passados, do Oriente e do Ocidente, de todas as artes, mitologias, ciências ou mundividências. E finalmente temos o homem de Schopenhauer que é designado por Nietzsche como o verdadeiro homem, como o filósofo, artista e santo. Na confrontação com o mistério do ser (Dasein) existe para este homem unicamente o desejo de aperfeiçoamento da natureza, ou seja da consubstanciação com a pluralidade da vida. Nietzsche chamou também a este facto “o significado metafísico da cultura”. A consequência desta aspiração é a impossibilidade de subordinar-se às “verdades” correntes, aos governos, autoridades, opiniões políticas ou crenças religiosas, porque estes são sempre transitórios. Esta consciência do transitório é um símbolo que está presente em quase toda a obra de Pessoa. Por outro lado, a independência absoluta é a designação do homem de Schopenhauer e tem o seu eco também em Fernando Pessoa quando ele diz: “Só quando uma humanidade livre de preconceitos de sinceridade e coerência tiver acostumado as suas sensações a viverem independentemente, se poderá conseguir qualquer coisa da beleza, elegância e serenidade na vida.” (F. Pessoa, “Crónica da Vida que Passa” in: O Jornal, n° 2, Lisboa 1915).

            O segundo aspecto que revela o encontro entre Pessoa e Schopenhauer é o de uma influência directa, representada na profunda convicção de Pessoa sobre a impossibilidade do livre arbítrio. Arthur Schopenhauer entregou em 1838 na Academia Real da Noruega uma dissertação para responder à questão seguinte: “Será possível demonstrar o livre arbítrio através da consciência de si próprio?” Schopenhauer considerou esta questão como um dos problemas principais na história da filosofia e acentuou que na resposta a esta questão se distinguem os pensadores profundos dos pensadores superficiais. Fernando Pessoa, como jovem estudante de filosofia, tomou conhecimento deste texto em 1906 numa tradução francesa (Arthur Schopenhauer, Essai sur le libre arbitre, Trad. et annoté par Salomon Reinach. 9ème ed., Félix Alcan, Paris 1903, 212 p., Bibliothèque de Philosophie Contemporaine). Através das frases sublinhadas nesta edição e através das anotações que se encontram no espólio de Pessoa, podemos concluir que se tratou de uma leitura muito atenta. E, de facto, poder-se-á afirmar que a filosofia ocidental é neste contexto bipolar. Por um lado, encontramos os pensadores que defendem entusiasticamente a liberdade das acções humanas, por outro lado temos os chamados naturalistas em cujo pensamento não há espaço para qualquer possibilidade de um livre arbítrio. Demonstrando que o livre arbítrio é uma auto-ilusão da consciência, Schopenhauer encontra-se com a sua negação da liberdade nas acções humanas na tradição de Demócrito e Espinosa, e teve com esta tese também discípulos famosos, tais como Albert Einstein ou até Thomas Mann. 

Na argumentação de Schopenhauer, a liberdade só pode ser um conceito negativo porque aqui entendemos sempre a falta de obstáculos. Neste sentido, temos que distinguir entre a liberdade física, intelectual e moral. A liberdade física é a ausência de qualquer tipo de obstáculos materiais. Mas este é, como também Pessoa escreveu nas suas anotações, apenas um conceito puramente físico, e, em geral, o homem sente quase sempre motivos diferentes e mais fortes que impedem as suas acções. Pessoa notou explicitamente que no caso da liberdade física o homem não difere do animal: “Man is perfectly an animal and the only primitive sense in this case is the sense of physical freedom.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos I, Ática 1968, p. 206). A consideração de que através uma liberdade física se pode demonstrar o livre arbítrio é para Pessoa falsa e inconsistente. Da mesma maneira, pode existir uma forma de liberdade intelectual, mas esta é em Schopenhauer reduzida a um “uso livre do intelecto nos processos das decisões”. O conceito mais importante para Schopenhauer é a liberdade moral. Apenas na reflexão deste conceito é possível aproximarmo-nos de um entendimento do livre arbítrio. Schopenhauer e Pessoa entenderam a ideia da liberdade moral não propriamente como primordial, embora a ideia geral da liberdade não deixe de ser puramente metafísica. Ou, como Pessoa escreveu: “(The) idea of liberty (is) a purely metaphysical idea.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos I, Ática 1968, p. 206).

 Através destas reflexões, chegamos ao famoso tema de Schopenhauer onde este afirma que não há a mínima dúvida de que o homem pode fazer o que quer, mas de certeza que não pode querer o que quer. Na típica mistura pessoana entre citação e pensamento próprio estamos confrontados com o mesmo contexto: “I can do what I will.” Of thus there is of course no doubt. So long as I am not imprisoned nor chained nor paralytic, nor hindered by any physical obstacle, I am free: l can do what I will. “But can I will what I will and will nothing else?” The great question is all here.” (Ibid.: 206). Schopenhauer explica esta questão através de um longo raciocínio filosófico e também a partir da diferença entre os verbos “poder” e “querer”. Imaginemos um homem que sai depois de oito horas de trabalho do escritório. Pensa: Agora são seis da tarde e posso dar um passeio. Também posso ir para um clube ou posso visitar amigos. Posso também ir para um miradouro e observar o pôr-do-sol, ou posso ir ao teatro. Também posso sair da cidade e viajar pelo mundo inteiro, e nunca mais na minha vida vou regressar. Tudo isso está ao meu alcance e tenho a liberdade absoluta de fazer o que quero. Mas agora vou de livre vontade para casa onde a minha mulher já está à minha espera. Schopenhauer menciona aqui um erro fundamental no pensamento deste homem. Na consciência de si próprio, ele pode sem dúvida desejar todas estas coisas, mas sob a influência das suas condições íntimas ele só pode fazer uma destas coisas. Influenciado por determinadas razões ou motivos, o homem só pode fazer o que estas razões ou motivos permitem. Tudo o que acontece, acontece inevitavelmente. Schopenhauer usa aqui para a sua demonstração a frase latina “Quidquid fit necessario fit.” que se encontra também nas anotações do jovem estudante de filosofia em Lisboa com o acréscimo: “All acts are determined and necessary.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos II, Ática 1968, p. 91). E este determinismo parece ser um dos pilares do pensamento pessoano quando ele deixa António Mora por volta de 1915, o que significa quase nove anos depois de leitura de Schopenhauer, afirmar: “Tudo é determinismo; tudo é determinado. A liberdade é uma ilusão; não passa, no campo real, de uma ilusão necessária á vida. Para agir, no próprio sentido que seja (e assim tem de ser) do determinismo, é preciso crer que a acção é livre.” (Ibid.: p. 289). Sumariamente é possível constatar que o homem pode fazer o que quer. Pode andar no lado direito ou esquerdo do passeio, pode suicidar-se ou não. Estas são decisões triviais. Mas racionalmente, o homem tem apenas capacidades reduzidas em reconhecer as motivações que estão na base do seu querer. Por outras palavras, ele pode fazer o que quiser, mas fá-lo necessariamente. O livre arbítrio é sempre uma auto-ilusão da consciência de si próprio.

Schopenhauer mostra aqui, curiosamente, uma certa importância na criação da heteronímia pessoana ao continuar com a sua argumentação, dizendo que as motivações ou as causas dos nossos actos encontram-se no carácter que o filósofo alemão considerou como constante e inato. Antes de uma análise literária, uma das perguntas mais importantes para cada pessoano devia ser: Por que razão Pessoa criou este Universo paralelo que parece ter sido para ele mais real do que a sua vida quotidiana na Baixa pombalina ou nos cafés do Chiado? Embora a heteronímia pessoana só tenha nascido oito anos depois da leitura de Schopenhauer, é possível questionar se as excursões do filósofo sobre o carácter tiveram uma influência indirecta na concepção dos heterónimos. O carácter empírico de cada homem corresponde exactamente ao próprio Ser deste homem. Por outras palavras, o homem já é exactamente aquilo que ele quer. É precisamente esta determinação da vontade pelo carácter que se encontra também em Pessoa: “Por carácter (em grego ethos) entendo a manifestação social da individualidade. A individualidade manifesta-se de três maneiras, seguindo as três divisões radicais (não importa agora analisá-las) da inteligência, sensibilidade e vontade, ou, se melhor julgarem, desejo – a faculdade pela qual nos exteriorizamos. É a esta que se liga o carácter, que é, já o dissemos, a manifestação social da individualidade.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos I, Ática 1968, p. 194). Neste ponto podemos explicar o motivo pelo qual o próprio Fernando Pessoa não assumiu a autoria de um manifesto futurista. Simplesmente porque nunca teve o carácter de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa também não escreveu poemas bucólicos porque o seu carácter não foi determinado pelas motivações de um simples guardador de rebanhos do Ribatejo. E ele também não é o autor de algumas odes clássicas porque não nasceu sob as mesmas condições de um médico com aspirações monárquicas. Ou por outro lado, o carácter de Ricardo Reis impediu-lhe de escrever versos como: “Ah, e a gente ordinária e suja (...) cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.” (F. Pessoa, “Ode Triunfal”, in: Orpheu I, Lisboa 1915). Esta tentativa de interpretar a heteronímia pode parecer à primeira vista um pouco despropositada, mas faz sentido se olharmos para os cuidados que Pessoa teve na criação dos seus heterónimos. Como único exemplo só quero chamar a atenção para as experiências das caligrafias diferentes dos heterónimos e para um livro da biblioteca do poeta. Trata-se de um manual prático com o título How to read character in handwriting or The grammar of graphology described and illustrated with numerous autographs and diagrams de Henry Frith.

E, para terminar, deve-se apontar mais uma semelhança entre Fernando Pessoa e Arthur Schopenhauer. O filósofo alemão negou sempre a liberdade ou a vontade empírica do homem, mas sublinhou claramente uma liberdade transcendental da vontade. O ímpeto do nosso mundo foi considerado por Schopenhauer como uma vontade absoluta ou cega (blinder Wille) e esta vontade é absolutamente livre e inexplicável, o que Pessoa repetiu: “The only thing really free is the Absolute Will or Universal Will which, being indetermined, is thereby absolute or free.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos II, Ática 1968, p. 90). Esta vontade cega é para Schopenhauer o Ding-an-sich à semelhança do que os gregos consideraram o destino, um conceito que podemos encontrar na obra de Pessoa inúmeras vezes sob a designação de Sorte, Fatum, Moira ou até Fado. Para Schopenhauer e Pessoa apenas existe uma liberdade absoluta. Mas estas esferas transcendentais são para o nosso raciocínio completamente inatingíveis. Desta maneira, a liberdade continuou a ser para o filósofo alemão e para o poeta português um mistério.

 

BIBL.: Dix, S., “O Poeta «animated by philosophy» ou A Admiração perante a Existência do Universo”, in: Dix, S. e Pizarro, J. (org.), A Arca de Pessoa, Lisboa 2007.  

 

 

Steffen Dix