Em 1905, Fernando Pessoa, ao pisar o porto da pátria-língua-portuguesa, auscultou o agitado e desordenado palpitar das entranhas dessa terra que quis que fosse a sua. Sentiu a revolta dessa nação sofrida com o presente, adivinhou-lhe o passado dorido e pressentiu um futuro perturbante.

Chegou ainda a tempo de ver o sangrar das feridas abertas pelo liberalismo oitocentista; a funda marca cavada pelo terror da perda da independência causada pelo domínio de Napoleão e pela cobardia da dinastia de Bragança; a alma retalhada pela humilhação trazida pela sobranceira Inglaterra; os momentos agitados de convivência anarquista e republicana e de escutar atentamente o despertar de um nacionalismo de impulso messiânico: o Sebastianismo.

Esta forma de “religião portuguesa” (para alguns exegetas), que se encontrava em profunda dormência desde 1813 com a prisão e o internamento no manicómio do “último sebastianista” (assim reza a história), voltou a reacender-se, já não na alma popular, mas na mente de filósofos, no espírito de historiadores e no pincel ou pena de alguns artistas. Os primeiros acolheram-na como tema e procuraram compreender e analisar este fenómeno, os segundos propuseram estudar a sua genealogia e explicar a sua sobrevivência como crença ao longo de três séculos; os últimos receberam-na como motivo na sua busca estética. Enfim, por paradoxal que pareça, o Sebastianismo renascente reflectia a expectativa que se vivia no Portugal de então.

O momento social “entre”, que Portugal atravessava, deixava pairar no ar o espírito de desespero e esperança. A esperança atiçou a chama do passado e incentivou a procura e o encontro com as suas raízes. O contexto de enorme agitação política, de grande efervescência social e de profunda renovação cultural que se vivia acendeu, uma vez mais, um vivo e particular interesse pela questão sebastianista. Deste período datam prolíferos e controversos estudos sobre o mito sebástico e a sua origem.

Cidadão do seu tempo, Fernando Pessoa deixou-se arrastar pela torrente dos novos ventos que sopravam e chamou a si a tarefa de vivificar esse sentimento religioso profundamente enraizado na tradição nacional: o sebastianismo.

Vemo-lo, por isso, na senda de Oliveira Martins e do seu Portugal Contemporâneo, sobretudo, nas ideias por ele avançadas na sua História de Portugal, quando atribui o nascimento do Sebastianismo à religiosidade profunda da alma portuguesa, e à consequente e imperiosa necessidade por esta vivida de criar uma fé que lhe fosse própria e sentisse autêntica. Ainda com Oliveira Martins, imputa à consciência nacional, alheia ao catolicismo que de fora lhe fora imposto e, por essa mesma razão, incapaz de compreender e definir com clareza e precisão os seus pressupostos transcendentais, a apropriação errada dos preceitos doutrinários herdados da Igreja de Roma. Já, em muitos outros aspectos, nomeadamente no que respeita à tese de improvisação céltica de Oliveira Martins, a visão de Fernando Pessoa afasta-se deste autor para se aproximar mais da de Sampaio Bruno que considera doentio todo o espírito que delega nas mãos de um herói predestinado (el-rei D. Sebastião) a libertação do homem.

Se tal como Bruno, Fernando Pessoa vê o sebastianismo como um motor de salvação independente de qualquer personalização (ainda que Álvaro de Campos se assuma, por vezes, como esse Messias vindouro, instaurador do novo reino do Anti-Cristo, novo reino – império da ciência – que se distancia, em muito, do Quinto Império de Pessoa), afasta-se dele ao personificá-lo numa nação: a nação portuguesa. No entanto, como Sampaio Bruno, o nosso poeta não deixa, igualmente, de o estender a um futuro superior transcendente (não esqueçamos que o Quinto Império é espiritual) e alargado à humanidade em geral. Não nutre, porém, a ilusão, como aquele, de que esse futuro superior seja definitivo, pois a voz da sua consciência diz-lhe que “morrerá como os outros, o Quinto Império, e o eterno ciclo recomeçará” (E3: 125B-62 e 62ª). Um outro aspecto, ainda, em que estes dois autores são radicalmente discordantes tem a ver com a assumpção do significado nacional do sebastianismo: Pessoa crê, contrariamente a Bruno, na força “religiosa” do sebastianismo, no seu poder espiritual, por estar certo de que o ideário sebastianista não é uma criação louca de algumas mentes desvairadas, mas o resultado de um facto histórico que se estatuiu em “centro histórico imaginário”.

 Segundo Pessoa, devido a interpretações influenciadas pelo espírito católico, o regresso de D. Sebastião era explicado à luz do messianismo judaico. E, por isso, o país viu nesse rei desaparecido misteriosamente em Alcácer-Quibir o Messias que um dia viria para que finalmente Portugal cumprisse a missão que lhe fora superiormente predestinada. Culpava, portanto, esses exegetas, que considerava incompetentes e ineptos na interpretação da profecia, pelo estado passivo e expectante do alento nacional. A seu ver, a nação encontrava-se, por assim dizer, suspensa. Vivia um “episódio de intervalo” semelhante ao que experimentara quando criou o fado, esse momento histórico em que a alma portuguesa “não existia e desejava tudo sem ter força para o desejar” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 693). Incapaz, por conseguinte, de acção, o “psiquismo nacional” alimentava-se do engano “da recordação colorida dos grandes feitos por cumprir” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 572).

Se, como vimos, o pensamento de Fernando Pessoa partilha com Oliveira Martins a ideia de “raça”, de “alma portuguesa”, de “religião nacional”e com Sampaio Bruno a ideia do poder impulsor do mito e de, no fundo, este ser uma espécie de força interior própria ao ser humano, comunga mais de perto, ainda, com os ideais dos renascentes, muito particularmente de Teixeira de Pascoaes, na convicção da existência de uma alma pátria com características únicas que a distinguem da dos outros povos; na aceitação do valor ontológico, metafísico e religioso da saudade de que o sebastianismo é uma das manifestações; na crença no génio da língua portuguesa, universo profundo de significações, cuja alta revelação da verdade caberia a esse mestre da palavra que é o poeta.

Pessoa assumiu-se, então, como o mestre da palavra, esse tal homem de génio dotado de capacidade inata excepcional, a quem cumpre fazer uso desse dom, pois “se não o fizer, graves contas prestará”, se não a Deus, “com certeza a si próprio futuro.” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 33). E para não prestar as tais contas “a si-proprio-futuro” concentrou todo o seu esforço para fazer uso, como diz, do génio de que era “um mero depositário”. Usou todos os meios para alcançar este fim: fez erguer das cinzas D. Sebastião cujo regresso era há tanto esperado, porque, como diz, o mito faz mais facilmente mover um povo que a força da razão; confirmou a missão de Portugal como instauradora do Quinto Império; enalteceu o homem português que com “mente segura e planeadora e braço apto a realizar o que ele próprio planeou.

Guiado por este objectivo, o poeta pôs mãos à obra na expectativa de reanimar e renovar “o velho anseio sebastianista, único religiosismo verdadeiramente português.” (Pessoa Inédito, p. 229). Conjecturou, então, redigir a tal obra onde apresentaria a sua tese sobre esta polémica temática. Com esse fim, elaborou vários planos para a sua organização. Porém, a um deles acrescentou um ponto, ou capítulo a desenvolver, conforme alguns testemunhos, que noutros toma corpo como um volume independente: “Educação do sentimento sebastianista” (E3 125A-99). Este seu desejo de educar, a nosso ver, vai ao encontro da sua vocação inata de pedagogo e à necessidade de agir, ou seja, de ser o tal homem de acção que, um dia, disse ser. Para ele, essa “educação do sentimento sebastianista” passava pela demarcação e rejeição daquilo a que chamou sebastianismo tradicional e pela apologia da sua tese sobre o “novo sebastianismo”. Este capítulo, ou livro, seria constituído por três partes: a primeira parte apresentaria um estudo sobre a “fé sebastianista”; a segunda, uma análise daquilo a que chamou “sentimento sebastianista” e a terceira, considerações sobre a “atitude sebastianista”. Pensava, assim, explicar de forma clara e evidente a origem do sebastianismo, as condições para a sua sobrevivência e o seu papel impulsionador.

Para Pessoa, Bandarra foi o grande o profeta da fé sebastianista. No testemunho atrás citado anota entre parênteses, a propósito da “criação da fé sebastianista”, que esta vai “do Bandarra aos nossos dias.” As Trovas de Bandarra seriam, a seu ver, uma espécie de livro sagrado que fundamentava aquela nova religião. E foi desse “fenómeno ligador de almas” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 689) que se serviu para atear o braseiro que se mantinha latente sob as cinzas que o cobriam. Achou-o de grande utilidade para os seus intentos mobilizadores de consciências, (criar a tal “atitude” sebastianista) por, precisamente, essa nova religião preencher as três condições necessárias, segundo ele, à sua própria sobrevivência: “(1) ser nacional, isto é, diferente das religiões dos outros países, porque assim apoia-se no patriotismo o mais radical dos sentimentos sociais, e ao mesmo tempo intensifica-o; (2) ser popular, isto é, quanto possível saída não se sabe donde, formada não se sabe bem como; (3) ser quanto possível susceptível de evolução e adaptação.” (Ibidem).

Quanto à “criação do sentimento sebastianista”, o autor de Mensagem situou-a, conforme anotação no mesmo testemunho, no espaço de tempo que vai de Antero de Quental ao saudosismo. Aquele sentimento, no seu ponto de vista, surgiu com este poeta por ter sido ele quem abriu “um novo caminho, nessa revelação de um novo sentir, que em matéria literária propriamente constitui a mestria” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 183) e desabrochou com o movimento saudosista, “the pantheist movement (which the Porto monthly «A Águia» represents) gradually worked itself up through Afonso Lopes Vieira (since fallen into imbecility) to António Correia de Oliveira, up to the full transcendental pantheism of Teixeira de Pascoaes, one of the greatest of living poets and the greatest poet Europe now has” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 185) para se manter sempre vivo na literatura de expressão nacional, a verdadeira manifestação sensível da alma portuguesa. A “atitude sebastianista” de que fala, seria ele, Fernando Pessoa, que a iria criar com a denúncia do “sebastianismo tradicionalista” e a divulgação e defesa do seu “Novo Sebastianismo”.

O princípio que rege o “Novo Sebastianismo” de Fernando Pessoa assenta num preceito que muito preza, e do qual se serviu sistematicamente como base argumentativa para as suas diferentes teses. A sua premissa baseia-se no equilíbrio das duas forças antagónicas que estão na origem da matéria orgânica: o anabolismo ou integração e o catabolismo ou desintegração. É com base na luta contínua de atracção (ou conservação) e repulsão (ou desagregação) entre estas duas forças que o poeta procurou explicar “cientificamente” os fenómenos sociais. Não esqueçamos que, para ele, uma sociedade ou nação “é um ente vivo mental, uma espécie de organismo psíquico” (Língua Portuguesa, p. 31), logo, um organismo vivo, cuja vida e vitalidade dependeriam do equilíbrio entre as forças contrárias que o animam.

Para o nosso “indisciplinador de consciências”, a tradição com o seu apego ao hábito e ao passado representava a força integradora e consequentemente de estagnação; a força desintegradora, porque se alimentava do desejo aceso da novidade e da ânsia de mudança, figurava, portanto, a destruição, ou, como o poeta prefere chamar-lhe, a anti-tradição.

Ora, “O Novo Sebastianismo” pessoano caracteriza-se, precisamente, pelo seu cariz pragmático. Com a sua acção interventora, o poeta almejava desencadear energias capazes de transmutar a postura expectante da nação em actuante. Transformar o passivo em activo, ou, para usar a sua terminologia, passar do estático ao dinâmico. Porém, o dinamismo de que o autor fala, nada tem de desintegrador ou centrífugo, porquanto essa energia que pretendia soltar deveria estar apta a absorver tudo quanto não violentasse a índole nacional. Nesta sua tese sobre o novo sebastianismo, Pessoa, por assim dizer, apontou os meios materiais necessários à manutenção do equilíbrio entre aquelas duas energias que, por princípio, se excluem mutuamente. Uma vez criados os meios, demonstrou ser possível alcançar a harmonia entre os contrários; o concerto entre a atitude tradicional e a posição anti-tradicional face ao mito sebastianista. Acabou, neste caso, por provar ser possível a alguns seres humanos – os génios – realizar a tal síntese entre os opostos que, como disse, só aos deuses, eventualmente, caberia.

Umas das ferramentas de que se serviu foram os textos dos profetas que directamente (e também indirectamente, como Nostradamus) anunciaram o destino imperial de Portugal. Talvez, até, tenha sido também este facto que o levou a comentar pormenorizadamente as Trovas de Bandarra e a aventar mesmo a hipótese de dar à estampa o resultado do seu estudo. Assim o atestam os vários planos e alguns textos e fragmentos que, sobre a obra que conjecturou publicar, a sua arca guardou.

 Deste livro que projectou apenas nos deixou uma espécie de prefácio, ou melhor, uma introdução como registou num dos seus projectos, onde define os objectivos que o nortearam na concretização desta sua tarefa: “É este livro um glossário, ou rede interpretativa, das profecias que sobre os destinos de Portugal, e relativamente do mundo, fizeram Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro de Trancoso, e também outros portugueses que viram pela mesma Luz.” (E3 125-77). Nas páginas que pensou virem, um dia, a dar corpo ao tal glossário, Pessoa tece algumas considerações sobre a profecia em geral e a sua visão simbólica, bem como expõe o seu pensar sobre a inteligência superior do seu intérprete.

Ainda que, na introdução à obra que pensou escrever, nos diga que esta tinha por alvo “antes de mais nada fixar o sistema pelo qual as vozes proféticas hão-de ser interpretadas” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 609-610), pensamos que, com este seu comentário às profecias de Bandarra visava, outrossim, atiçar a memória e reavivar a crença no auspicioso futuro de Portugal. Tornar mais clara a mensagem do profeta com o intuito de cada um poder julgar por si a verdade desse conjunto de “textos sagrados” que continha a história completa do povo português, a passada e a futura, tal como a Bíblia no seu Antigo Testamento narrava a história do povo hebraico, foi ânimo que, sem dúvida, guiou a sua pena.

Foi desta espécie de nova Bíblia dos profetas-apóstolos do sebastianismo, que o poeta se serviu para reacender esse sentimento religioso lusíada sufocado pelo culto que de fora lhe fora imposto. E para que as profecias de Bandarra tocassem, também, o terreno inculto do público iletrado, Fernando Pessoa, em mais um acto de despersonalização, escreveu quadras de improviso popular muito ao jeito tropeção do tradicional cego visionário (Pessoa Inédito, p. 351-356). Pensava, deste modo, atingir dois “mundos (mentais) essencialmente diferentes” (Língua Portuguesa, p. 19), que, para ele, constituíam o sustentáculo do mundo civilizado: o do povo e do homem letrado. Para chegar junto deste último, serviu-se, do “fenómeno cultural” e “aristocrático” que, para si, representava a palavra escrita e, para se aproximar do primeiro; socorreu-se do “fenómeno social” e “democrático” que, a seu ver, a palavra falada retratava. Usou, portanto, da palavra escrita para cumprir o que determinou ser o seu “dever cultural”: pensar por si e, por conseguinte, sem obediência a outrem; para o que considerou ser o seu “dever social”: obedecer à lei do maior número, conformando-se aos hábitos e educação do seu destinatário, usou da palavra falada.

O espírito de pedagogo que sempre o guiou deitou mão a personalidades distintas e a “instrumentos pedagógicos” diferentes para conseguir que a tal “perturbação das consciências” capaz de agitação caísse e florescesse nos terrenos mais díspares. Com a sua palavra escrita, de carácter essencialmente didáctico, a tal “rede interpretativa” das profecias de Bandarra, pensava influir no meio culto e na classe letrada e com a sua voz, que naquelas quadras toscas de carácter panfletário se fazia ouvir, cuidava tocar o coração daqueles cuja “afectividade impulsiva e incoerente”, cuja “descontinuidade de vontade e de pensamento”, e cujo “amor pátrio animal e firme” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 551) governavam a razão. Com estas suas prestidigitações ambicionava, somente, tornar a mensagem profética transitiva às três espécies ou classes em que arrumou o homem português: o homem do escol ou culto, o homem letrado ou intelectual ou erudito e o homem comum ou povo.

Ora, na óptica pessoana, o que faltava justamente a Portugal era o meio culto “criador de civilização” que ensinasse a “crescer para dentro”. Foi esta a missão que o poeta se atribuiu, consciente de que, para a levar a bom termo, a sua palavra-acção deveria medrar em todos os estratos que constituíam o psiquismo desse ser vivo que considerava ser a grei portuguesa. Impôs-se, nesse caso, a tarefa fundamental de, com a arte do seu verbo, levar a nação a atravessar aquela fronteira que a separava do estado abúlico em que patinhava para o estado activo de tomar em mãos o seu próprio destino. A seu ver, o melhor caminho a seguir seria o de agitar e confundir para que a aparente desintegração ou destruição que daí adviria interagisse com a força letárgica integradora que então reinava. A energia sinérgica resultante dessa interacção propiciaria, na sua opinião, o advento dessa atitude “criadora de civilização”, missão a que a nação portuguesa estava destinada.

Segundo o seu ponto de vista, como já observámos, as forças que, nesse tempo, vingavam na sociedade portuguesa eram de carácter retrógrado e, portanto, estático. Urgia, por conseguinte, segundo o poeta, que uma voz rebelde e insubordinadora se fizesse ouvir a fim de, com o seu poder perturbador, cultivar a “desintegração mental”, essa tal forma de “agir anarquicamente e de modo absolutamente social ao mesmo tempo” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 691).Ser “um criador de anarquias” foi, provavelmente, o trajecto mais viável que se apresentou ao poeta para conseguir a necessária e urgente passagem do estado estático ao estado dinâmico, já que, a seu ver, “o que conserva só se torna dinâmico em virtude de ter de reagir contra o dinamismo das forças de desintegração” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 690). Todavia, o estado dinâmico de que fala deveria ser gerador de um dinamismo constante naturalmente apto a apropriar-se de tudo o que pudesse ser integrado sem desvirtuar o carácter nacional e repudiar tudo o que contribuísse para o seu aniquilamento. Subordinou, portanto, o seu papel interventor à acção, por ele considerada crucial, de arrasar todas as muralhas do conservadorismo retrógrado. Para alcançar tal fim, por um lado, teria de, na sua acção, ser capaz de derrubar os três preconceitos conservadores e retrógrados que dominavam a mentalidade portuguesa: o preconceito de tradição, ou como lhe chama em alguns textos, da “supertradicionalização”; o preconceito de ordem e o preconceito de autoridade. O primeiro, porque, na sua óptica, confundia meras cristalizações do carácter nacional com o carácter em si; o segundo, porque confundia ordem e imposição dogmática com o conceito de coordenação social; e o terceiro, porque confundia “individualismo absoluto” com “ordenação individual”, facto que, a seu ver, veio a gerar uma política de autoridade de feição anti-individualista; por outro lado, teria de fazer com que as forças vitais da nação acertassem com o tal tempo “criador de civilização”. A resposta na tal energia aglutinadora, cujo epicentro assentava num fenómeno além razão, uma crença ou fé, capaz de unir e motivar os ânimos de todos os meios sociais e culturais da sociedade portuguesa. E esse prodígio, que procurava, encontrou-o, Pessoa, no movimento de carácter religioso feito em volta da figura nacional de el-rei D. Sebastião.

Na sua tese sobre o “Novo Sebastianismo”, Fernando Pessoa propõe-se actuar sobre três núcleos, que considera essenciais para a sobrevivência desse corpo social que é a nação portuguesa: o sentimento religioso, as forças sociais e as forças individuais.

No primeiro caso, o curativo a aplicar visava eliminar a doença causada pela contaminação infecciosa do espírito católico a fim de (re)nacionalizar o sentimento religioso português. No segundo, a cura passava por conseguir “a coordenação das forças sociais” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 690) para que todas se concentrassem no mesmo objectivo: a afirmação de Portugal perante o mundo. No terceiro ponto, o tratamento previa “a ordenação individual” (ibid.), ou seja, a erradicação do individualismo absoluto tendente a pensar apenas em si próprio como ser único e, portanto liberto de quaisquer preocupações sociais para, assim, dar espaço ao indivíduo enquanto supremo valor e realidade essencial da sociedade.

Convicto de que “são os instintos que reúnem os homens e a inteligência que os separa” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 1048), regulou a sua acção de modo a que esta incidisse fundamentalmente sobre “a base do instinto social” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 1055) que, segundo ele, tem no patriotismo, “forma colectiva do egoísmo, base de toda a vida psíquica” (ibid.), a sua expressão mais acabada. Por isso, com os seus escritos ortónimos e heterónimos, o seu “drama-em-gente” e, muito particularmente, com a Mensagem, o poeta julgou influir e dominar a opinião pública da nação. Com eles, esperava provocar uma reacção patriótica instintiva que pudesse vir a coordenar e guiar no caminho ascensional da pátria portuguesa.

Não podemos, na verdade, afirmar que Pessoa tenha sido um criador de mitos. Todo o seu empenhamento se concentrou em renová-los, recriando-os. Portanto, esse tal Encoberto que levaria Portugal a constituir-se como Quinto Império não o via, Pessoa, na figura de D. Sebastião redivivo, “senão [na] substância que essa pessoa e o seu nome simbolizam” (ibid.), nem tão-pouco encarnado nesse tão esperado Messias que, a mando de um qualquer poder sobrenatural, um dia haveria de vir ensinar o caminho da salvação. Interpreta a vinda desse Desejado “no seu alto sentido simbólico” (Pessoa Inédito, p. 229), isto é, esse Vindouro não seria o esperado portador da mensagem do além, nem a pessoa carnal do rei D. Sebastião, mas, sim, “qualquer coisa que ele representa” (Pessoa Inédito, p. 228). Talvez um guia, esse tal génio “prenúncio do estado futuro da humanidade” (E3 125B-20) cuja mensagem figuraria o beijo ressuscitador das almas adormecidas e cuja voz lhes indicaria o caminho até ao sonhado Quinto império ou Império Espiritual.

Na árdua missão que a si chamou esforçou-se por trazer à lembrança da nação portuguesa os feitos memoráveis do passado homem português que “apareceu na civilização como homem harmónico, mente segura e planeadora, braço apto a realizar o que ele próprio planeou” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 557). E, no prosseguimento deste seu fim, entre muitos outros escritos, a sua pena deu vida ao conjunto de poemas “em que resume a história passada e a promessa da história futura de Portugal” (E3 14²- 69 e 69v): Mensagem. Com esta publicação pretendia, como afirma na resposta a Artur Portela, quando, por este entrevistado para o Diário de Lisboa, em 14/12/1934, “projectar no momento presente uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis marcar o destino de Portugal, esse império que perpassou através de D. Sebastião, e que continua «há-de ser»” (OPP II 1339). A sua atitude sebastianista visa despertar Portugal do sono letárgico em que caíra, adormecido pelos tempos “dos Filipes, dos Braganças” e da “República” (Obra Poética e em Prosa, II, p.411), tempos que, segundo ele, “representam a ausência” (ibid.) da nossa história. Na sua contenda em prol de Portugal, empenhou-se profundamente, como se disse, no seu papel de “indisciplinador” e “criador de civilização”, para que o povo português que julgava “capaz de tudo, logo que não lhe exigissem nada”, esse “grande povo de heróis adiados” (Obra Poética e em Prosa, III, p. 571), que diz sermos, espertasse, uma vez por todas, do son(h)o que o entorpecia: ter “um Quinto Império no bairro, e um auto-D. Sebastião em série fotográfica do Grandela” (Obra Poética e em Prosa, III, p.572).

Ao reacender a crença vivificada pelos mitos nacionais – Sebastianismo e Quinto Império –, Fernando Pessoa pretendia fazer emergir na nação portuguesa a consciência da identidade nacional. E, nesse espaço mítico que pressentiu como “realidade” dinâmica, imaginou poder reencontrar-se com o pulsar profundo e autêntico desse ser colectivo que confiava ser a alma portuguesa. Reanimou o mito para com a força da sua influência “compelir cada alma a, de facto operar a sua própria salvação” (Pessoa Inédito, p. 228), confiante de que essa “salvação” ancoraria no ressurgimento de “a ânsia de domínio, e a tensão de todas as potências da alma em torno dessa ânsia.” (ibid.). A seu ver, “a tensão de todas as potências da alma” engendraria a necessidade quotidiana de criar as forças espirituais que iriam fundar os alicerces do futuro império português.

Fernando Pessoa vê no Sebastianismo, por ser “um conceito nosso” (como diz a propósito do Encoberto em Pessoa Inédito, p. 228), essa tal força impulsionadora de acção, fonte de energia estimuladora de almas e congregadora de vontades. Para ele, o impulso de tudo está nesse lugar paradoxal do nunca e do sempre que é o mito.

Não se arroga, portanto, um produtor de símbolos ou, como ele próprio diz, “um criador de mitos”, mas, apenas, uma voz capaz de reanimar a figura simbólica de D. Sebastião interiorizada, apesar de adormecida, pelo grupo que pretende “manobrar”. Julga, desta forma, obter um resultado mais rápido e mais seguro, ou seja, conseguir uma espécie de mobilização mais célere ou, por assim dizer, uma transubstanciação das relações capaz de transformar a visão do mundo e a acção sobre este.

Persuadido de que “não há homens salvadores. Não há Messias. O máximo que um grande homem pode ser é um estimulador de almas, um despertador de energias alheias. Salvar um homem a um povo inteiro – como o poderá fazer, se esse povo inteiro não fizer por salvar-se – isto é, se esse povo inteiro não quiser ser salvo? «Obra tu a tua salvação» diz S. Paulo; e o grande homem é aquele que mais profundamente compelir cada alma a, de facto, operar a sua própria salvação” (Pessoa Inédito, p. 228), distancia-se do imaginário colectivo para quem a figura simbólica de D. Sebastião é percebida como o próprio significado e não como simples manifestação deste. Profundamente conhecedor dos textos que servem de suporte à filosofia providencialista do povo português (e também do povo brasileiro), como se viu, Pessoa analisa-os e interpreta-os para deles fazer uso e para com eles jogar o jogo da entidade superior que em si criou: o supra-Camões que anuncia na Águia, ou o “Gama” de Álvaro de Campos na Laus Europae – Laus Olissiponis (E3 125-8 e 9).

O grau de distanciamento que mantém no que respeita ao providencialismo português, e, particularmente, no que concerne a figura rediviva de D. Sebastião, abalançou-o a escrever ao director do Jornal do Comércio. Nessa carta, chama a atenção para uma gralha que, embora “de uma só letra”, alterava integralmente o sentido de uma passagem de O Interregno que o seu amigo Augusto da Costa aí fizera publicar. Requer a reposição da verdade do seu texto a fim de que os leitores pudessem ser devidamente elucidados quanto à sua visão do mito sebastianista. Na sua missiva, sublinha a palavra que deu origem ao erro e explica o sentido que lhe quis dar quando dela se serviu. O importante, para o autor de O Interregno, era marcar, de forma clara e inequívoca, a sua oposição aos ideais dos sebastianistas que apoda de tradicionais: “Não escrevi liberais: escrevi literais. E, como é de ver com esta palavra literais entendi designar aqueles velhos Sebastianistas que tomavam à letra o Regresso profetizado de El-Rei D. Sebastião, Nosso Senhor; que enganadamentesupunham pessoal e carnal esse Regresso. Implicitamente os opus àqueles outros Sebastianistas que, como Augusto da Costa e eu, esperamos e confiamos nesse Regresso no seu alto sentido simbólico, que é o verdadeiro.” (Correspondência II, p. 134). Por esta razão, o Sebastianismo de Fernando Pessoa é essencialmente prático: um elemento galvanizador capaz de animar os espíritos que Alcácer-Quibir deixou para sempre cativos.

 

 

Bibl.: Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, I, II e III, ed. António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão, 1986; Sampaio Bruno, O Encoberto, Porto, Lello, s/d; Besselaard, José Van Den, O Sebastianismo – história sumária, Lisboa: ICALP: 1987.

 

 

 

Luísa Medeiros