Aquela que pode ser considerada uma segunda fase do Modernismo literário português, engloba as revistas que preparam, nos anos 20, o aparecimento em Coimbra da presença, os treze anos em que se publicou, entre 1927 e 1940, esta “folha de arte e crítica”, e a Revista de Portugal, que deu a público dez volumosos números entre 1937 e 1940. Dada a relativa longevidade da presença e a relevância que assumiu o seu programa estético, generalizou-se a tendência, na nossa historiografia literária, para confundir o presencismo e o  Segundo Modernismo, o que é dificilmente sustentável, tendo em vista a diferença que, em vários aspectos, a Revista de Portugal  representou e as vias que vai abrir no processo evolutivo da moderna literatura portuguesa.

            A presença desempenhou, como é sabido, um papel fundamental no reconhecimento da geração anterior, a geração do Orpheu. Não por acaso, certamente, entre os directores da “folha” se encontram dois dos críticos que mais fizeram, numa fase inicial, pela imposição da obra de Fernando Pessoa, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro. A José Régio, o principal doutrinador da presença, se deve, por outro lado, aquela que será a primeira tentativa de caracterização do Modernismo – a que realiza, ainda antes do aparecimento da revista, no capítulo final da tese de licenciatura apresentada na Universidade de Coimbra, em 1925, sob o título de As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa. Régio retomará, várias vezes, nas páginas da “folha”, o estudo do Modernismo, tornando-se, aí, notório que é especialmente sensível ao que no movimento aponta mais no sentido do «eterno» do que no sentido do «transitório», para usarmos os termos a que Baudelaire recorre na sua famosa definição de modernidade. É igualmente visível nos escritos de Régio, não só nos que vieram a lume nas páginas da presença como nos que deu a público noutros lugares depois de 1940, que as suas preferências relativamente às duas figuras centrais do Primeiro Modernismo, Mário de Sá-Carneiro e Pessoa, vão para o primeiro, sentindo como menos próximo o segundo, por aquilo que veria como um seu excesso de intelectualismo.  

            Os autores que, nos anos 30, estudaram o Modernismo, como um Pierre Hourcade, com “Panorama du Modernisme Littéraire en Portugal”, publicado no Bulletin des Études Portugaises, em 1931, ou um Hernâni Cidade, com Tendências do Lirismo Contemporâneo. Do “Oaristos” às “Encruzilhadas de Deus”, 2ª ed., 1939, reconheciam a existência de uma continuidade entre os poetas do Orpheu e os poetas da presença, falando mesmo Hourcade de um único «espírito modernista». Era esta, aliás, a perspectiva dominante na época, como o demonstram quer a publicação do volume antológico Cancioneiro por ocasião do I Salão dos Independentes, em Maio de 1930, em Lisboa, no qual figuravam os nomes mais em evidência da família modernista, quer a nota de abertura do nº 2 da revista Sudoeste, de Almada Negreiros, de 1935, que juntava na mesma homenagem os «colaboradores de Orpheu e da presença», sendo o número seguinte, do mesmo ano, integralmente preenchido por colaborações de autores ligados a cada uma das revistas.

            Depois de uma primeira fase mais militantemente agressiva em algumas das suas manifestações, como pode ver-se em parte dos dois números do Orpheu dados à estampa em 1915e no número único de Portugal Futurista, vindo a público dois anos depois, o Modernismo português teria genericamente entrado, no período entre as duas Guerras Mundiais, à semelhança, de resto, do que se verifica noutros espaços culturais, numa fase de uma certa acalmia, de, digamos, um regresso à ordem, a que se juntaria, como o mostra o subtítulo da presença, a necessidade de uma ponderação «crítica».  

            No princípio dos anos 60, Eduardo Lourenço publica um ensaio que fez história, “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo”, no qual opõe à ordem da presença,  traduzida na circunstância em termos de «psicologismo», a radicalidade do Orpheu, apresentada como «aventura ontológica negativa». A tese de Lourenço, sedutora na sua formulação, ao colocar a presença do lado da ordem e o Orpheu do lado da «revolução poética», não tem, porém, em conta a real diversidade de vozes quer de uma quer de outra revista. Nem tudo no Orpheu corresponde, afinal, a propostas de Vanguarda, nem os poetas da presença, em geral mais propensos a formas moderadas de Modernismo, passam ao lado, na sua totalidade, das formas mais transgressivas de escrita que associamos à faceta vanguardista da modernidade. Eduardo Lourenço, como Casais Monteiro observou, centra a sua argumentação na oposição Pessoa – Sá-Carneiro / Régio e Torga. Ora, não faltam no Orpheu ( basta pensar num Alfredo Guisado ou num Armando Côrtes-Rodrigues ) poetas vinculados ainda a uma estética finissecular, que se situam, pois, na continuidade do Simbolismo. Como também é impossível não notar a presença de um impulso vanguardista em diversos poetas da revista de Coimbra, e.g., na música atonal e no prosaísmo dos versos de Casais Monteiro, no desvario verbal do primeiro António de Navarro, nos poemas em prosa de Branquinho da Fonseca ou no que já se anuncia de onirismo e de surrealidade no Edmundo de Betterncourt anterior ao milagre que irão ser os Poemas Surdos, escritos ao longo dos anos 30. Melhor que ninguém, Jorge de Sena esclareceu a questão em artigo que dedicou às comemorações do cinquentenário da presença em 1977: «Se o Orpheu foi uma ‘revolução’, a presença só pode ser chamada uma ‘contra-revolução’, na medida em que, como sucede a todas as revoluções, tentou organizar a ‘revolução’ e explicá-la criticamente, mas não no sentido de ter mantido o combate contra o academismo e a superficialidade, etc., e sobretudo de ter lutado pela independência do escritor e da criação artística. Este último aspecto reveste-se, naqueles anos, de peculiar importância que não deve ser diminuída: aspecto que torna o ‘presencismo’ que, como escola, não houve numa época literária que, essa sim, existiu e representou o modernismo» (p. 30).

            O quadro do Segundo Modernismo só fica completo se se considera o papel desempenhado pela Revista de Portugal, de Vitorino Nemésio, nos últimos anos da década de 30. Aí se inicia o processo de maior visibilidade do próprio Nemésio, Paulo Quintela dá a conhecer Rilke, Delfim Santos revela Heidegger, e se assiste, como observou Fernando Guimarães,  a «uma valorização implícita da especificidade da literatura», que não deixará de ter reflexos em autores revelados nas duas décadas seguintes.

Não obstante o profundo enraizamento na nossa tradição crítica moderna de uma designação periodológica como a que vem indicada em epígrafe, a leitura da poesia novecentista portuguesa só terá, porventura, a ganhar com uma visão do Modernismo que o aproxime mais de um megaperíodo, das durações intermédias do que das durações curtas, como Primeiro e Segundo Modernismo, a que, com frequência, se tem procurado restringi-lo.

 

Bibl.: Guimarães, Fernando, A Poesia da “presença” e o Aparecimento do Neo-Realismo, Porto, Editorial Inova, 1969; Lourenço, Eduardo, “Presença ou a contra-revolução do Modernismo português?”, Tempo e Poesia, Lisboa, Relógio d’Água, 1987, pp. 143-168; Sena, Jorge de, Régio, Casais, a “Presença” e Outros Afins, Porto, Brasília Editora, 1977.

 

 

Fernando J.B. Martinho