(1564-1616)

Entre os escritores que Pessoa considerava serem os maiores de toda a história – Homero, Dante, Shakespeare e Milton –, os dois últimos, por estarem mais próximos dele no tempo e em termos linguístico-culturais, eram os ídolos literários que emulava e cuja influência sentia. Considerava John Milton mais perfeito pela maior capacidade construtiva e a consequente harmonia estrutural dos seus conjuntos poemáticos, ao passo que William Shakespeare era o mais inventivo, com uma imaginação demasiado fértil para ser capaz de a organizar convenientemente. Em Erostratus, um ensaio sobre a celebridade literária escrito por volta de 1930, Pessoa sustentou que Milton tinha mais talento do que Shakespeare mas que este era mais inteligente. O dramaturgo e poeta era «tão supremo na intuição, que constitui o génio, e na rapidez da singularidade» como «deficiente na construtividade e na coordenação» (Heróstrato, p. 68).Várias passagens contidas nos muitos papéis deixados por Pessoa referem a enorme efervescência mental de Shakespeare, aliada a uma grande falta de disciplina. É fácil concluir que o poeta português, conquanto compartilhasse a veia pensativa e metafísica de Milton, tinha mais afinidades com Shakespeare no que respeita ao temperamento artístico. Pessoa, aliás, comparou-se directamente ao «supremo despersonalizado» que era o criador de Hamlet, enquanto Álvaro de Campos, numa «Nota ao Acaso» publicada em 1935, afirmou que «Shakespeare era essencial e estruturalmente factício; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma constante sinceridade, de onde a sua grande grandeza» (Crítica, p. 520). O parentesco entre esta poética e a do autopsicografador é mais do que evidente.

Por isso parece estranho, ou talvez, pelo contrário, seja compreensível, que o nome de Shakespeare não figure na lista de influências que Pessoa elaborou em 1914, a pedido de Armando Côrtes-Rodrigues, precisamente na altura em que estava a despersonalizar-se sobremaneira através da explosão dos heterónimos. A omissão não se pode atribuir ao simples facto de o escritor isabelino ser de uma época anterior à dos românticos ingleses, Baudelaire, Cesário Verde e outros nomes que constam nessa lista. Milton, nascido quando Shakespeare ainda vivia, é nela mencionado quatro vezes. A verdade é que Pessoa estava intimamente, agonicamente ligado a Shakespeare. Entre 1910 e 1921 gastou uma parte razoável da sua energia criativa a imitar o bardo sem pudor, ou melhor: concorria com ele no seu próprio terreno, tentando superá-lo naquilo que Shakespeare inventara. Na verdade, os 35 Sonnets publicados por Pessoa em 1918 (e outros não publicados, destinados a uma edição aumentada que não se concretizou), são do tipo «shakespeariano», com um esquema rimático (abab cdcd efef gg) e uma lógica interna muito diferentes dos que caracterizam o soneto petrarquista.

Pessoa contou, ao mesmo Côrtes-Rodrigues, que quis «reproduzir numa adaptação moderna» a «complexidade» patente nos sonetos de Shakespeare, e o segundo aspecto do seu objectivo – a complexidade – foi plenamente atingido. Levando ao extremo o recurso à antítese, a inversões sintácticas e a lexemas hifenizadas, os 35 Sonnets suscitaram a admiração (ambígua) de um crítico do Times Literary Supplement precisamente pelos seus «shakespearianismos ultra-shakespearianos». A «adaptação moderna» pretendida por Pessoa referir-se-ia aos temas abordados, relacionados não tanto com o amor (tópico quase exclusivo dos sonetos de Shakespeare) como com a natureza do ser nos seus diversos níveis de realidade, com a impossibilidade de nos conhecermos ou sermos conhecidos e com a tirania do tempo e do destino – temas universais, na verdade, mas talvez mais prementes para o homem moderno. Como acontece na generalidade da poesia inglesa escrita por Pessoa, aos seus sonetos faltam a organicidade que distingue os de Shakespeare, onde as palavras estão fundidas com os conceitos que exprimem.

A veleidade de Pessoa de superar Shakespeare – ou pelo menos de o actualizar, de ser um Shakespeare do seu e do nosso tempo – tem paralelo na sua tentativa de produzir, com a Mensagem, uma espécie de Os Lusíadas moderno e melhorado ou, ainda, com o whitmanismo abismado e sem fé de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos (segundo a convincente leitura de Eduardo Lourenço), eventualmente mais adequado ao homem desenganado do século XX do que poderia ser o apóstolo americano da Democracia e do Humanismo. No entanto, entendia que a obra dramática de Shakespeare era actualíssima e de uma qualidade única, sendo por isso que em 1923 propôs, a uma pequena editora (a mesma que publicou a Clepsidra, de Pessanha, em 1920), a tradução de doze das suas peças, começando por A Tempestade, da qual tinha, efectivamente, algumas passagens já traduzidas.

Se ousou chamar a essas mesmas peças um grande «fracasso» artístico (num texto, E3 139/15, destinado a um ensaio sobre Shakespeare), é porque a grandeza literária delas não cabia no dramaturgo, a quem faltavam os meios e talvez a vontade para disciplinar tanta criatividade transbordante. Podemos aventurar que Pessoa, afinal, se assemelhava à maior glória das letras inglesas pelo mesmo motivo. Obras como o Livro do Desassossego, o Fausto, os diversos conjuntos de poesia só parcialmente realizadas e ainda outros projectos inacabados eram também grandes «fracassos», insusceptíveis de ser domados e controlados pelo seu autor ou, quem sabe, por qualquer talento humano.

O seu fascínio pela figura de Shakespeare, bem como pela natureza e a etiologia do génio, levaram Pessoa a ler e a escrever muito sobre uma discussão da época em torno do verdadeiro autor das suas peças – Shakespeare ou Bacon.

 

 

 

Richard Zenith