Pessoa afirma algumas vezes uma vontade de síntese que compensa a fragmentação das sensações e a pluralidade dos «eus». Eis um exemplo, em 1915, de uma importante carta a Armando Côrtes-Rodrigues: «Ainda tenho muito a empreender dentro do meu espírito; disto ainda muito de uma unificação como eu a quero» (Correspondência I, p. 139). Aliás, na mesma carta exprime assim o mesmo desejo: «Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito» (Correspondência I, p. 140).

Mas já antes, na fase da teorização da «nova poesia portuguesa», em 1912, é a ideia de síntese que serve de centro a toda a argumentação, pois (diz numa carta a Boavida Portugal) a originalidade da poesia da Renascença Portuguesa «só poderá vir portanto de uma fusão do psiquismo da Renascença com o psiquismo do Romantismo» (Correspondência I, p. 50). Trata-se de um momento especial na formação da sua poética, e, nessa passagem dos anos de 1912 para 1913, escreve outras duas cartas em que reitera a ideia de síntese. Primeiro uma carta a Mário Beirão: «O que é preciso obter é aquela qualidade que os gregos tiveram maximamente – a noção da poesia como “um todo composto de partes”, e não aquela em que V. tende a cair – pelo género da sua intensa inspiração – a da poesia como “partes compondo um todo”» (Correspondência I, p. 57). Depois, em carta a Jaime Cortesão, há uma passagem em que se percebe a reticência de Pessoa relativamente à poesia saudosista, e se recupera a ideia, que não pode ser evitada, de que a sua teorização dessa nova poesia é também anúncio de uma poesia futura: «É que há um terceiro elemento, e nesse ainda a nossa nova poesia é pecadora: é a construção, aquilo a que se pode chamar a organicidade de um poema» (Correspondência I, p. 73).

Depois, no artigo sobre uma exposição de Almada que publica em A Águia em 1913, escreve, a propósito do «multiformismo» de Almada: «Creio na Síntese, sempre» (Páginas Íntimas, p. 90).

Noutro contexto, o fundamento para a tripartição de todos os argumentos, característico de Pessoa, é dado pela relação que estabelece com «a lei orgânica da disciplina mental, o regulamento eterno da criação psíquica» (Páginas de Estética, p. 139). Esse axioma exprime o vasto movimento do espírito humano para a síntese, e marca os pensamentos de Platão, S. Paulo e  Hegel. Noutro horizonte, aquela definição por Pessoa várias vezes prosseguida do povo português, e segundo a qual o seu carácter é marcado pela curiosidade, pelo cosmopolitismo, aparece, pelo menos uma vez, caracterizado como um «poder de sintetizar em si todas as correntes estrangeiras» (Ultimatum, p. 243). Essa é, pois, uma qualidade que se torna fundadora da própria ideia de nação portuguesa, e depois das suas ampliações míticas quinto-imperistas.

Mas a importância da noção de síntese situa-se no período heróico da Vanguarda portuguesa. Em torno de Orpheu, que é definido como «a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos» (Páginas Íntimas, p. 155). Depois, a poética que se chama Sensacionismo em Pessoa e Almada Negreiros – e também em Sá-Carneiro, embora este quase só por citação ou, no caso de Manucure, paródia – constitui a cena por excelência da sua aparição: «a arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a ter só uma regra – ser a síntese de tudo» (Páginas Íntimas, p. 124). A síntese aparece notada no artigo «Movimento Sensacionista» da revista Exílio, numa fórmula de clareza impecável para a dialéctica da síntese e da fragmentação. Está a referir o livro As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, oprimeiro do seu autor: «Procure o sr. Cabral do Nascimento ter sempre este facto tão presente, que não saiba que o tem presente – que uma obra de arte, por dispersa que seja a sua realização detalhada, deve ser sempre uma coisa una e orgânica, em que cada parte é essencial tanto ao todo, como às outras que lhe são anexas, e em que o todo existe sinteticamente em cada uma das partes, e na ligação dessas partes umas às outras» (Crítica, p. 131). Pode concluir-se que, se o fragmento é a realidade textual de Pessoa, a síntese é o seu desejo. Daí, também, que o seu pensamento seja atravessado por oxímoros, paradoxos que realizam sínteses ao nível do discurso, por exemplo: o «misticismo materialista» (Pessoa por Conhecer, p. 396), a «república aristocrática» (Ultimatum, p. 80), a «fraternidade agressiva» (Crítica, p. 240), o «nacionalismo cosmopolita» (OPP III: 896), a «metafísica recreativa» (Pessoa por Conhecer, p. 457).

E aqui, finalmente, pode tomar lugar a expressão muito clara de Leyla Perrone-Moisés: «Se algo unifica as múltiplas personalidades do Poeta é, paradoxalmente, a questão sempre presente da unidade impossível do sujeito Pessoa» (1988: 327).

 

 

Bibl.: Leyla Perrone-Moisés, “Pensar é Estar Doente dos Olhos”, in O Olhar, ed. Adaulto Novaes, S. Paulo, Companhia das Letras, 1988.

 

 

Fernando Cabral Martins