(1877-1952)

Fernando Pessoa tinha uma percepção precisa da magnitude dos seus contemporâneos. Veja-se como caracteriza Teixeira de Pascoaes (de seu nome Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos), numa carta de 1916 a um editor inglês, propondo a publicação nessa língua de uma antologia de poetas contemporâneos portugueses: “Suponha que o Romantismo inglês, em vez de retroceder até [aos vitorianos] Tennyson-Rossetti-Browning, tivesse progredido directamente de Shelley”; o resultado seria um inédito sublime moderno: “Se for capaz de conceber um William Blake imerso no espírito de Shelley e escrevendo através dele, terá talvez uma ideia mais justa do que quero dizer” (Páginas Íntimas, p. 129). Esta descrição de Pascoaes, cujo ascendente foi polemicamente visado por muito do trabalho poético de Pessoa no annus mirabilis de 1914, é, nos termos de Pessoa, dificilmente excedível. Pascoaes permanece, no entanto, um autor de difícil acesso. Apropriado por uma débil construção derivativa, a Filosofia Portuguesa, e parecendo enfermar de uma dicção poética pré-moderna, a sua permanência deve-se hoje à persuasão de alguns leitores maiores (Sena, O’Neill e, especialmente, Cesariny). Estes perceberam, sob essa usada dicção poética, um sistema intelectual e enunciativo de uma audácia inigualada em português, que faz dele o único par de Pessoa no século XX (e que apenas pode ser conhecido lendo, primeiro, as biografias do autor [São Paulo, São Jerónimo e a Trovoada, O Penitente (Camilo Castelo Branco), Napoleão, e Santo Agostinho], e só depois a sua obra poética anterior [cf. infra]).

A apreciação que Pessoa faz de Pascoaes recorre em vários textos, e coexiste com a crescente colocação de reservas. Num fragmento sobre a literatura portuguesa moderna, por exemplo, Pessoa refere o “pleno panteísmo transcendentalista de Teixeira de Pascoaes, um dos maiores poetas vivos e o maior poeta lírico da Europa actual”, a que associa Guerra Junqueiro e a Oração à Luz, obra “ímpar na poesia moderna, [a qual, todavia,] se exceptuarmos a Grande Ode de Wordsworth, não consegue, no entanto, atingir o voo puro e a espiritualidade indomada da grande Elegia de Pascoaes (em Vida Etérea)” (Páginas de Estética, pp. 334-5). Em «A Nova Poesia Portuguesa No Seu Aspecto Psicológico», publicado em 1912 em A Águia, ao descrever as filosofias características dos grandes períodos literários europeus, Pessoa considera que a forma mais alta de “transcendentalismo”, o “panteísta”, terceiro termo de uma das inúmeras tríades que povoam de um hegelianismo mecânico a sua prosa, fora já atingida por Pascoaes. A sua modalidade emotiva, para ser preciso, que se revela numa peculiar combinação de contrários (a “materialização do espírito” e a “espiritualização da matéria”) que algumas pedras-de-toque literárias exibem (o exemplo mais invocado por Pessoa é este, de Pascoaes: “A folha que tombava / Era alma que subia”) (Crítica, p. 44). Num outro texto, depois de citar esses dois versos de Pascoaes e uma estrofe de Cortesão, conclui, com brutalidade polémica: “Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta maior elevação do que estas expressões, e especialmente a extraordinária primeira, contêm. […] Haverá, é claro, quem não sinta a elevação e originalidade daqueles versos. O raciocinador, porém, limita-se a apresentar raciocínios. Não é obrigado a uma preliminar distribuição de inteligência.” (“Reincidindo …”, Crítica, pp. 23 e 29). (Os dois versos de Pascoaes são objecto de incorporação por Pessoa. Veja-se este passo de uma carta de Mário de Sá-Carneiro a Pessoa [Paris, Jan. 1913]: “Quero destacar aqui um admirável, um enorme verso seu, este: «Quanto mais desço em mim, mais subo em Deus” [CFP I  49].)

A relação entre Pessoa e Pascoaes é, nesta fase inicial, resultado de uma divisão de talentos que o primeiro vê como coincidente no propósito: a “estonteante” conclusão do aparecimento próximo de um “super-Camões” é “de ordem a coincidir absolutamente com aquelas intuições proféticas do poeta Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro glorioso que espera a Pátria Portuguesa. Tudo isso, que a fé e a intuição dos místicos deu a Teixeira de Pascoaes, vai o nosso raciocínio matematicamente confirmar.” (“A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”, Crítica, p. 15). A auto-descrição de Pessoa como “raciocinador” e crítico, sob que começou por defensivamente se apresentar em público, convive, todavia, com a necessidade de separar-se de Pascoaes. Esta ambivalência é claramente visível numa carta de 4 Março 1913 ao director de A Águia, Álvaro Pinto, em que Pessoa revela a sua “morbidez de escrúpulo em que não falhe elo na argumentação”, a sua “calma e esforçada elaboração de raciocínios”, para depois referir “a pavorosa crítica do Pascoaes ao livro de Basílio Teles e o artigo (tão estranho para quem tem responsabilidades de raciocinador) que o Leonardo Coimbra escreveu sobre o Regresso ao Paraíso”(Correspondência, vol I, p. 83). Em 1923, Pessoa afirma a irrelevância de A Águia (ao referir a “antiga Águia – a Águia que voava”, em que tanto quis colaborar, e cujo círculo celebratório em torno do corifeu do grupo, Pascoaes, procurou emular, criando a sós o círculo celebratório dos heterónimos), mas considera ainda Pascoaes o precursor maior: “Os sinais do nosso ressurgimento próximo estão patentes para os que não vêem o visível. São o caminho de ferro de Antero a Pascoaes e a nova linha que está quase construída.” (“Entrevista sobre a Arte e a Literatura Portuguesa” Revista Portuguesa 13 de Outubro de 1923: Crítica, pp. 196-7).

Os sinais de afastamento, todavia, tinham sido já contemporâneos do alto elogio de Pascoaes que Pessoa fizera nos anos anteriores, e que imediatamente se seguiram, à emergência dos heterónimos. Veja-se, por exemplo, a separação de domínios a que dá voz na carta a Álvaro Pinto de 12 de Novembro 1914: “a mera análise comparada dos estados psíquicos que produzem, uns o saudosismo e o lusitanismo, outros obra literária no género da minha e da (por exemplo) do Mário de Sá-Carneiro, me dá como radical e inevitável a incompatibilidade de aqueles para com estes.” (Correspondência I, p. 129], ou, de modo afim, o que afirma numa carta a Sá-Carneiro que este reproduz na sua resposta com gratidão: “Agradeço-lhe entranhadamente [...] o que você diz na parte da sua carta: «Afinal estou em crer que em plena altura, pelo menos quanto a sentimento artístico, há em Portugal só nós os dois»” [Paris, Maio de 1913, Cartas a Fernando Pessoa, I, p. 133]. O Saudosismo era, para Pessoa, de um provincianismo debilitante: “Onde está o erro da Renascença Portuguesa? O primeiro é em estar no Porto. De resto, não podia ter nascido senão no Porto, de modo que, como em tudo, se repararmos bem, na própria única coisa possível está o defeito inevitável. Sem esse defeito, não teria havido a causa, nem o efeito portanto” [“Sobre um Inquérito Literário (1914?), Páginas de Estética, p. 336]. Pascoaes, por seu turno, padece de debilidade formal por exuberância profética, tal como Pessoa explica a Sá-Carneiro, e este reproduz em carta de Paris de Janeiro de 1913: “Ainda assim eu não trocaria o que em mim causa esse sofrimento pela felicidade de entusiasmo que têm homens como o Pascoais. Isto – que ambos sentimos – é do artista em «nós»”; “os entusiasmados e felizes pelo entusiasmo, sofrem de pouca arte”. [Cartas a Fernando Pessoa, I, p. 47].

A poesia de Pascoaes, tal como descrita por Pessoa nos seus artigos de A Águia em 1912-13, é, todavia, crucial à emergência de Alberto Caeiro. O “panteísmo idealista” de Pascoaes, em que se reconhece o impulso monista do Alto Romantismo, caracteriza-se pelo colapso da relação entre objecto e sujeito, entre Natureza e poeta, em que o segundo termo subsume o primeiro. Ou seja, como diz Pessoa em “A Nova Poesia Portuguesa No Seu Aspecto Psicológico”, “Para os nossos novos poetas, uma pedra é, ao mesmo tempo, realmente uma pedra, e realmente um espírito, isto é, irrealmente uma pedra” [Crítica, p. 64]. A crítica de Caeiro dirigir-se-á contra esta implosão de contrários, não contra estes singularmente considerados. Um texto em inglês descreve o modo radicalmente original como, contra Pascoaes e os modernos, uma pedra se pensa em Caeiro: “Perguntai a vós mesmos: que pensais de uma pedra quando olhais para uma pedra sem pensar nela? O que vem a dar nisto: que pensais de uma pedra quando não pensais absolutamente nela? A pergunta é perfeitamente absurda, é verdade. O estranho é que toda a poesia de Caeiro se baseia neste sentimento” [Páginas Íntimas, pp. 338-9; Pessoa Inédito, pp. 100 e 139]. Esta posição é, aliás, antecedida de uma anotação em português, amiúde citada, onde se deriva geneticamente Caeiro de Pascoaes: “Talvez Caeiro proceda de Pascoaes; mas procede por oposição, por reacção. Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto – Alberto Caeiro” [Páginas Íntimas, p.337]. Uma tal oposição reactiva determina O Guardador de Rebanhos como uma polémica continuada. Numa entrevista concedida em Vigo, Caeiro repele de modo aceso uma sugestão do entrevistador de que seria “filiado na corrente da Renascença Portuguesa”: “Quando leio Pascoaes farto-me de rir. Nunca fui capaz de ler uma coisa dele até ao fim. Um homem que descobre sentidos ocultos nas pedras, sentimentos humanos nas árvores” (Poemas Completos de Alberto Caeiro, pp. 213-4). O poema XXVIII de O Guardador de Rebanhos articula implicitamente este entrechoque, permitindo-nos dar um nome próprio, Pascoaes, ao portador abstracto da patologia particular que consiste em animar o inanimado: “Li hoje quase duas páginas / Do livro de um poeta mystico / E ri como quem tem chorado muito. // Os poetas mysticos são philosophos doentes, / E os philosophos são homens doidos. // Porque os poetas mysticos dizem que as flores sentem / E dizem que as pedras teem alma / E que os rios teem extases ao luar”.

Pascoaes é, além disso, um poeta de uma suprema acuidade cognitiva: tendo tido acesso a alguns dos poemas de Caeiro, e não, naturalmente, à massa de reveladores inéditos entretanto publicada, intuiu exactamente o ânimo polémico profundo de Alberto Caeiro. Eis como, numa carta tardia, o caracteriza: “O Afonso Duarte é uma pessoa adorável. Quanto ao Caeiro, toda a sua poesia consiste em dizer que as cousas são o que parecem ser!! Que se as pedras tivessem alma, não eram pedras! Que ideia ele faz das pedras e das almas! Nem chega a ser infantil!...Não é assim?” (A Letra e o Leitor: 198n)].

A polémica entre Pessoa e Pascoaes recobre, no entanto, afinidades profundas entre o maniqueísmo gnóstico de Pascoaes e a negatividade pagã de Pessoa. Eis uma descrição demasiado breve de algumas posições nucleares do primeiro [extraída quase verbatim de FEIJÓ 1992], que, caveat ao leitor, devem ser lidas de modo absolutamente literal. Descrever, como Pessoa faz, a relação de Pascoaes com a Natureza como uma “espiritualização da matéria” é eufemístico, e requer análise. Para Pascoaes, a Natureza é, mais precisamente, uma catástrofe: o sol é “uma chaga de Satã, um cancro aceso”, a Primavera “emanação diabólica”. Só a treva, que é a “morte da paisagem”, inspirava Camilo, por exemplo [Napoleão, 33; São Jerónimo: 38; O Penitente: 68]. O homem é uma criatura nocturna porque é, de todos os animais, “o menos banhado em sol, o mais fantástico”; a subjectividade é sombra interior ou negatividade satânica. Esta qualidade é logicamente extensiva ao próprio Pascoaes, e transparece por isso nas biografias que escreve: “Também eu adoro os Santos, mas como demónio, isto é, martirizando-os. Martiriza-se uma flor, para se lhe extrair todo o perfume” [Santo Agostinho: 257, 230-1]. Pascoaes revê-se numa forma de sublimidade cruel: quem martiriza a pessoa amada “imita o deus de Israel, perante o seu povo eleito. Assim o amor procede odiosamente” [Santo Agostinho: 229]. A fealdade do Deus do Génesis em Pascoaes excede quer o furor antitético com que Blake o retrata nos seus poemas, quer a figuração repulsiva que Milton lhe dá em Paradise Lost: quando “os anjos maus se revoltaram, Deus perdeu a cabeça e desviou-se do seu caminho”: “o homem nasceu da revolta dos anjos demoníacos”, está “condenado ao inferno” O Penitente: 122; São Paulo: 29; Santo Agostinho: 149]. Uma conclusão parece impor-se: “se os anjos obedientes desbarataram os rebeldes, é que os obedientes não eram melhores que os rebeldes” [Santo Agostinho: 289, 284].

O “Mal resulta duma fatalidade da Criação, que tinha de ser inferior ao Criador…. O Mal é a própria Criação, distanciada do criador, em qualidade”. O Cosmos criado distancia-se do Criador “para baixo”: “A água mana sempre num sentido oposto ao lugar da fonte: nascendo, cai” [São Jerónimo: 17]. A sucessão temporal nesta descrição não deverá dissimular o maniqueísmo original que é a mais fundamental de todas as posições de Pascoaes: “Deus volta-se contra si, e é Satã; e este, em desacordo consigo, é o próprio Deus. O demónio que se revolta é logo um anjo; e é um demónio o anjo revoltado. Surpreendemos, no nosso, íntimo a luta bíblica, e assistimos à vitória do mal e à do bem” [Santo Agostinho: 121]. À vitória de ambos, porque cada um ocupa o lugar deixado vazio pela retracção do outro. A Criação é um declínio demiúrgico, e o Criador requer, por isso, um movimento de correcção. Em São Paulo, Pascoaes diz-nos que o Filho corrige o Pai, que “entre o Pai e o Filho há um estado de luta que não finda”. Separa-os um “Calvário infinito”, pois o “o Pai abandonou o Filho” [195]. (O “pai de Napoleão só existe como cancro no estômago do filho”. Como outras criaturas excepcionais, “Rómulo, Moisés, Teseu e outros Personagens”, o Imperador deveria ter nascido de pai incógnito [20, 295].) Por isso, depois de explicar como criaturas “predestinadas”, como Santo Agostinho, viveram um pacto particular com a mãe, cancelando a mais tóxica de todas as figuras da anterioridade, o pai, Pascoaes afirma que o melhor é nascer de si mesmo. Melhor do que ser filho sem pai, todavia, é ser pai de si mesmo: “Todo o indivíduo, atingindo certa idade, repele a influência paterna, torna-se pai de si mesmo, para ser ele, independente ou diferente – um novo ser. É assim que se cria a nova lei, os direitos do homem, por exemplo, e o decreto, assinado por São Francisco de Assis, que permite a entrada dos cães no céu” [Napoleão: 40]. Quando Paulo revogou a lei de Moisés, obra de um “velho deus, criado no deserto árido e hostil como todos os velhos e desertos”, gritou: “As coisas velhas passaram”. Este é o clamor de um “poeta original”. Ao “S fugidio” de Saulo sucedeu o “P grande e romano” de Paulo: “Agora é ele, destacado da sua pessoa inconfundível. Sabe que lhe compete o primeiro lugar e ocupa-o” [São Paulo: 50, 68]. A identidade plena de Paulo é demónica. O demónico é a categoria central do poético, porque “ser demónio é sermos nós, como ser os outros é ser anjo”. O angélico é uma vacuidade inútil, uma despossessão de si mesmo. “Um demónio é ele a ocupar o seu lugar, violentamente, à Átila, a secar as ervas, sob os seus pés, a receber a luz e a dar sombra” [Santo Agostinho: 284]. São Paulo e Santo Agostinho são aqui indistinguíveis dos poetas: as faces dos santos são despidas de sorrisos porque “eles foram demónios, e conservaram, para sempre, na fisionomia, a sombra duma lembrança dolorosa” [Santo Agostinho: 205]; os poetas, imersos no esforço segundo de aperfeiçoar a Criação, são como “Orfeu no Tártaro, onde reinam os demónios, que desencadeiam as guerras e as tempestades” [Santo Agostinho: 67].

O que caracteriza o homem é o dualismo original. “Tudo nos mostra duas faces”, e se “a nossa alma se alimenta de sombra”, irradia ao mesmo tempo “uma claridade consciente”. O dualismo é interior à alma: a consciência é um “fenómeno luminoso”, “uma forma subjectiva de luz, elaborada nas trevas” [São Jerónimo: 116]. A consciência recapitula o Génesis, é um enfoque de luz que dissipa o negro original. O negro original do homem é materialmente afim do que precedeu a Criação. Esta foi “um movimento do negro para o branco, do geral para o particular, ou do oceano para a onda”. O negro negado é o branco afirmativo, como o silêncio negado é o verbo. A sombra é inicial, “mas forma-se-lhe no peito uma nódoa branca, o fiat murmurado, não gritado”. A sombra é o medo anterior a tudo [Santo Agostinho: 15, 122-3, 140]. Como esta sombra ou medo anterior existe no homem, este transporta a negatividade que precedeu o Génesis, e é, por isso, mais do que criatura. Mais do que criatura, porque em si circula a sombra que o Génesis iluminou e fez consciente: o homem é, pois, “anterior a Cristo e a si mesmo” [São Jerónimo, 66]. A consciência, que nele alastrou como nódoa branca contra esse fundo de treva nativo, foi elaborada “por ela mesma”, porque, naquele que é um dos passos dos mais enigmáticos em Pascoaes, a consciência “é ela e esse demónio crítico das artes e das letras, anterior à nossa pessoa”. Este demónio crítico é-nos inato, “já existia, em nós, quando nascemos” [São Jerónimo: 169]. A nossa consciência “andou ao colo com Sócrates”, desenvolveu um poder dissolvente, “e manda em todos os velhos, incluindo o deus de Israel”. Manda, porque a arte e o mundo são por ela fundados: “Critica as artes, as letras, e foi autora do Génesis” [Santo Agostinho: 39]. A consciência, que é a glória da criação, do Génesis, é a autora do Génesis, da crónica enunciadora dessa criação e da sua própria emergência num momento eleito da criação. A consciência, ou “a visão crítica da vida”, “tem o seu tremendo símbolo no lobo a devorar o cordeiro ou a soldadesca romana a crucificar Jesus Cristo” [Santo Agostinho: 47]. O seu movimento é de apropriação violenta: “as coisas fazem parte da alma humana, que é o imaterial inicial intelectualizado ou a intelectualizar-se, a fim de se apropriar de si e do alheio, submetendo tudo a um exame crítico ou seja científico-filosófico” [Santo Agostinho: 160].

A dado passo de O Penitente, Pascoaes descreve Camilo sentado à sua mesa de trabalho, essa “Arábia Pétrea, sob um pano lutuoso”, quando surge uma figura “por cima da cabeça do escritor, como que tentando ver o que ele escreveu”. Pascoaes interroga-se sobre a identidade deste fantasma: “Donde vem semelhante aparição? De lá fora, das trevas? Do fundo da sua memória? Ou será ele mesmo um demónio crítico das Letras, por arte maléfica de algum Bernardes ou Lucena?” [O Penitente: 133, 132]. “Bernardes” e “Lucena” são aqui nomes do constrangimento idiomático que os clássicos impõem, e que Pascoaes, adepto da sinuosidade viva de uma língua falada, deplora (como também deplora o Romantismo hirto de Herculano, Castilho e Garrett,  “o chôr Herculano, o chôr António e o chôr João”: “É assim que falam aos porcos as camponesas. Tratam-nos por senhor” [O Penitente: 44]).

As biografias de Pascoaes descrevem um sistema gnóstico preciso, um “romance obscuro” de si mesmo, e uma teoria da criação poética. Os três domínios implicam-se num único nó, num único tópico que as biografias e a obra poética anterior modulam. O sistema de Pascoaes precede, e amplamente excede, teorias contemporâneas da influência poética que são hoje objecto de invocação ritual pouco precisa. Mas talvez isso se deva a que Blake lido por Blake excederá talvez Blake lido por um intérprete de Blake, mesmo que esse intérprete seja Frye, Damon ou Bloom. É neste sentido que a companhia de Fernando Pessoa é, mais do que a de qualquer outro, a de Teixeira de Pascoaes. Na biografia de S. Jerónimo, lemos que “o convento é a única habitação que não é cárcere” [32], a implicação sendo que o universo é a mais ponderosa forma de encarceramento. No livro de Bernardo Soares a mesma posição atrai mais do que um tópico do sistema de Pascoaes. Descrevendo um “sentimento súbito de estar enclausurado na cela infinita”, que impede qualquer noção de fuga, pois “só a cela é tudo”, Soares conclui: “E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia – um dia sem tempo nem substância – se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser” (Livro do Desassossego: 78).   

         

 

Bibl.: Poemas Completos de Alberto Caeiro, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Presença, 1994;COELHO, Jacinto do Prado, A Letra e o Leitor, 2.ª ed., Lisboa, Moraes, 1977; FEIJÓ, António M., “A Constituição dos Heterónimos. I. Pessoa e a Correcção de Wordsworth”, Colóquio / Letras, 140-141 Abril-Setembro 1996; FEIJÓ, António M., «Introdução», São Jerónimo e a Trovoada,Lisboa: Assírio & Alvim, 1992; FRANCO, António Cândido. A Literatura de Teixeira de Pascoaes (Lisboa: INCM, 2000); PASCOAES, Teixeira de, São Paulo, 1934, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1984; PASCOAES, Teixeira de, São Jerónimo e a Trovoada, 1936, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1992; PASCOAES, Teixeira de, Napoleão, 1940, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1989; PASCOAES, Teixeira de, O Penitente (Camilo Castelo Branco), 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1985; PASCOAES, Teixeira de, Santo Agostinho, Porto, Livraria Civilização, 1945.

 

 

 

António M. Feijó