Publicou Fernando Pessoa em 1912, na revista A Águia (II S., nº 4, 5, 9, 11 e 12), orgão da Renascença Portuguesa, cinco textos, constituindo três estudos centrados na poesia saudosista. No primeiro, publicado em Abril, “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”, estabelece Pessoa um paralelo entre a poesia da nova geração portuguesa e as grandes correntes literárias da Inglaterra e da França, o isabelianismo e o romantismo, com o seu estádio-Shakespeare e o seu estádio-Hugo; constatando que estas duas correntes antecederam períodos de grande dinamismo civilizacional, deduz “uma renascença extraordinária” para Portugal ao mesmo tempo que anuncia o aparecimento próximo de um supra-Camões. Um único poeta português moderno é citado, Teixeira de Pascoaes, mas esse com simpatia, já que o articulista pretende confirmar pelo raciocínio as suas intuições.

No segundo, dado à estampa em Maio, “Reincidindo”, Pessoa define uma corrente literária superior pelo recurso a três sub-períodos – o precursor, o meio-dia e o declínio –, encontrando na Oração à Luz de Guerra Junqueiro (que no texto seguinte classificará como a “obra máxima da nossa actual poesia”), na Vida Etérea de Teixeira de Pascoaes, na “nova fase de António Correia de Oliveira” e no “aparecimento de novos poetas, escrevendo já no novo estilo” a prova de que a literatura portuguesa vivia as primeiras badaladas do seu momento meridiano. É nesse texto que Fernando Pessoa começa a aprofundar “o aspecto exclusivamente literário” da nova poesia portuguesa; é também nele que cita pela primeira vez versos de Pascoaes e de Cortesão, tomando-os como representativos da originalidade e da elevação da nova literatura portuguesa.

O terceiro, publicado em Setembro, “A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico”, é a primeira parte de um tríptico, que continuará em Novembro e concluirá em Dezembro. No conjunto, é o estudo mais completo, aquele em que Fernando Pessoa mais se alarga na abordagem da nova literatura portuguesa. A leitura psicológica de uma corrente literária implicava segundo ele três aspectos, o metafísico, o estético e o social. Logo, partindo do aspecto estético, Fernando Pessoa aproveita o ensejo para abordar por dentro a nova poesia. Distingue assim entre uma poesia objectiva, da natureza, com três elementos característicos, nitidez, plasticidade e rapidez imaginativa, e uma poesia subjectiva, da alma, caracterizada pelo vago, a subtileza e a complexidade. Esta última, intelectualizando uma emoção ou emocionalizando uma ideia, é o traço mais significativo da nova corrente literária portuguesa. Os versos de Cortesão, Pascoaes, Junqueiro ou Mário Beirão mostravam porém uma capacidade de entrançar aspectos próprios à poesia subjectiva com aspectos da poesia objectiva, deixando por aí entrever o aparecimento do supra-Camões, sendo este o momento em que se dá o máximo equilíbrio entre objectividade e subjectividade.

É no texto final do tríptico, quando Pessoa decide indagar a metafísica da nova corrente literária portuguesa, que surge o transcendentalismo panteísta. Para ele os sistemas filosóficos dividem-se entre realidade e aparência. Assim os mais imediatos sistemas filosóficos são aqueles que pretendem negar como realidade um dos dados da experiência, a matéria ou o espírito, dando-o como aparência. Temos então o materialismo, que nega a realidade do espírito, e o espiritualismo, que nega a realidade da matéria. Logo de seguida, marcando progresso sobre a exclusividade destes dois sistemas, temos um novo sistema, o panteísmo, que admite a realidade de ambos os dados da experiência, a matéria e o espírito. O panteísmo pode ser materialista se a matéria estiver no espírito ou espiritualista se a matéria estiver no espírito. O panteísmo materialista é o de Espinosa, em que tudo é Deus, enquanto o espiritualista é o de Malebranche, em que Deus é tudo. Por fim, não perdendo de vista os modos da experiência, pode o filósofo não querer negar a realidade de um a favor de outro, como acontece de modo inverso mas idêntico no materialismo e no espiritualismo, nem tão pouco aceitar a realidade de ambos, como sucede no panteísmo, mas avançar com a irrealidade de ambos. Este último sistema é o transcendentalismo, que por sua vez pode ser sentido de forma espiritualista, se a irrealidade da matéria e do espírito partir da consciência, ou de forma materialista, se essa irrealidade for percebida de forma insconsciente, a partir do mundo, como é o caso de Schopenhaeur.

Ficam assim classificados em três unidades os sistemas filosóficos; o panteísmo marca progresso sobre o materialismo e o espiritualismo, como o trancendentalismo marca avanço sobre o panteísmo, pois encontra além da experiência do panteísmo um terceiro termo, o transcendente. Assim como assim, o transcendentalismo, quer materialista, quer espiritualista, não resolve a oposição do real e do irreal, já que para ele tanto a matéria como o espírito não são reais; real para ele só o transcendente. Se a oposição da matéria e do espírito encontrara solução no panteísmo, Fernando Pessoa acreditava que a nova oposição introduzida pelo transcendentalismo, real e irreal, podia ser resolvida por um novo sistema, síntese englobante e superior a todos os sistemas metafísicos anteriores, capaz de conciliar realidade e irrealidade. Parte para isso do real transcendente que, manifestando-se de forma irreal no espírito e na matéria, pode ser visto como sendo real e irreal ao mesmo tempo; fica assim aberta a possibilidade de um sistema em que tanto o real seja assumidamente irreal como o irreal assumidamente real. É o trancendentalismo panteísta. A suprema verdade que se pode dizer de uma coisa é que ela é e não é ao mesmo tempo – dirá Fernando Pessoa num dos passos mais impressivos dos textos de 1912 a propósito deste novo sistema, no qual tudo é e não é ao mesmo tempo.

O transcendentalismo panteísta surge com uma dupla função nos textos de 1912: por um lado, destina-se a construir o sistema de pensamento que seja a expressão filosófica de um novo período literário europeu, a Nova Renascença, e por outro a encontrar uma linguagem capaz de compreender a metafísica religiosa da poesia portuguesa saudosista, que, pela força paradoxal da ideação complexa, se mostrava a primeira expressão poética do novo sistema e por isso a porta de entrada do novo período literário europeu. É nesta última acepção de linguagem crítica que o transcendentalismo panteísta interage com um texto anterior de Leonardo Coimbra, publicado em 1910, a propósito da estreia de Jaime Cortesão. Nesse texto avança Leonardo para a poesia dos saudosistas a designação de “paganismo transcendente”. Ora sente-se na expressão leonardina a tensão paradoxal que caracterizará depois o panteísmo transcendentalizado de Pessoa. Mas o transcendentalismo panteísta serviu também a Fernando Pessoa para encontrar o seu próprio modo pensar; por isso, já depois de publicados os dois números de Orpheu, quer dizer, depois do seu afastamento da Renascença Portuguesa, apontará a Sá-Carneiro (carta de 6 de Dezembro de 1915) a impressionante semelhança do “paganismo transcendental” ou transcendentalizado com as novas fontes esotéricas que por essa altura preocupavam Pessoa. Também em dois momentos posteriores, “O Provincianismo Português” (in Notícias Ilustrado, 12.8.1928) e “O Caso Mental Português” (in Fama, 1-11-1932), nós podemos encontrar desenvolvidas algumas das proposições implicadas no transcendentalismo panteísta.

Foi no quadro do transcendentalismo panteísta que Pessoa anunciou a chegada do supra-Camões. O vaticínio valeu-lhe acusação imediata no depoimento de Adolfo Coelho ao inquérito de Boavida Portugal no jornal Républica. Pessoa respondeu com uma carta, “Uma Réplica ao Dr. Adolfo Coelho”, publicada a 21 de Setembro, que lhe serviu para esclarecer passagens dos seus dois primeiros estudos, os únicos até aí publicados. Pouco depois, no calor da fogueira que o inquérito levantou, Hernâni Cidade condensava: “Na resposta do professor Adolfo Coelho ao inquérito e na réplica de F. Pessoa ao sábio lente da Faculdade de Letras, eu vejo resumido todo o inquérito. Foram os dois críticos que mais inteligentemente e documentadamente traduziram as duas ideias que correm sobre a moderna literatura” (in Inquérito Literário, Boavida Portugal, 1915, p. 275).

Também António Sérgio, no mais demorado dos textos da polémica com Pascoaes, “Regeneração e Tradição, Moral e Economia” (in A Águia, Janeiro, 1914), escarnece do supra-Camões pessoano, optando por não referir o nome do autor, como já fizera Adolfo Coelho. Em carta a Raul Proença, Sérgio receitará ao vaticinador o hospício de alienados, contrapondo virulentamente o seu projecto racionalista a tudo o que no quadro das actividades iniciais da Renascença fosse saudosismo ou dele se aproximasse, como era o caso do transcendentalismo panteísta pessoano com o seu corolário poético de um supra-Camões. Pessoa, por seu lado, mau grado o avolumar das tensões entre ele e a Renascença, retomará por essa altura o projecto de escrever um panfleto de desagravo da Renascença Portuguesa, projecto que vinha da época das altercações do inquérito de 1912, informando Álvaro Pinto por carta (25 de Maio de 1914) que “no fim dele tratarei do António Sérgio”. Adite-se que em 1950, num texto evocativo do seu passado, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes desafiava o supra-Camões pessoano com aquela ironia transcendente e nada amarga que marca os momentos últimos da sua prosa.

 

Bib: FRANCO, António Cândido, Teoria e Palavra, Lisboa, Átrio, 1991; RIBEIRO, Álvaro, prefácio ao livro Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa, Lisboa, Inquérito, 1944, SÉRGIO, António, Correspondência para Raul Proença, org. de José Carlos González, Lisboa, Dom Quixote, 1987.

 

 

António Cândido Franco