O Ultraísmo foi o movimento literário mais importante da literatura espanhola de vanguarda entre 1918 e 1925, sendo o elo imprescindível entre a literatura do modernismo hispânico e a irrupção do Veintisiete como segmentos do mesmo processo de continuum da modernidade. Apesar disso, o seu papel foi durante muito tempo silenciado pela crítica literária, que até aos anos sessenta não conseguiu vislumbrar no seu gesto libertário e provocador mais que fogo de artifício estético.

É verdade que a história do movimento ultraísta está recheada de paradoxos. O seu fundador foi Rafael Casinos Assens, um poeta modernista (em sentido amplo, simbolista, bem entendido), mais velho do que a maior parte dos seus acólitos, e que passou de messias do movimento a traidor de alguns dos jovens escritores que o seguiram, com a publicação da sua novela em código El movimiento V.P. (1921), na qual caricaturiza a história interna do movimento e dos seus protagonistas. A Cansinos Assens se refere António Ferro em Batalha de flores (1923) como “o apóstolo da nova literatura espanhola”, numa das escassas menções que encontramos ao líder ultraísta entre os escritores vinculados ao primeiro modernismo português.

Se Cansinos Assens foi um autor de transição entre o modernismo hispânico e a vanguarda, essa mesma característica poderia aplicar-se à grande maioria de escritores que formam parte do movimento. Trata-se, com efeito, de modernistas ou modernistas tardios contaminados pela vanguarda, mas que raramente mergulham nas águas turbulentas dos ismos do momento na sua totalidade. É esse o caso, entre otros, de autores como Xavier Bóveda, Cansinos Assens (com o revelador pseudónimo Juan Las), José de Ciria y Escalante, Antonio Espina, Pedro Garfias, César González-Ruano, Rafael Lasso de la Vega, Eugenio Montes, Luis Mosquera, Eduardo de Ontañón, Heliodoro Puche, Humberto Rivas, José Rivas Panedas, Guillermo de Torre, Adriano del Valle ou Isaac del Vando Villar. De entre todos eles, o mais comprometido com o movimento foi Guillermo de Torre, empenhado – e por vezes cego pela paixão – em “poner su reloj con el meridiano literario de Europa”, como afirma em Literaturas europeas de vanguardia (1925).

A vida do Ultraísmo manifestou-se mais em revistas e soirées públicas do que sob a forma de livros, facto que não facilitou uma leitura crítica posterior que vinculasse a sua actividade estética aos momentos imediatos do Veintisiete. Exceptuando algumas colectâneas poéticas, como La rueda de color de Rogelio Buendía (1923, enviado pelo seu autor e comentado por Pessoa em algumas cartas), Hélices (1923) de Guillermo de Torre, La sombrilla japonesa (1924, também chegou às mãos de Pessoa) ou Viaducto (1925) de César González-Ruano, a obra dos poetas ultraístas consolidou-se em revistas minoritárias, muitas vezes também de transição e de difusão muito restricta, principalmente em Madrid: Alfar, Cervantes, Cosmópolis, Grecia, Horizonte, Parábola, Perseo, Plural, Reflector, Tableros, Tobogán, Ultra (Madrid), Ultra (Oviedo)ou Vértices.

Apesar desta vida incerta, e de ser um movimento mais pródigo em gestos (como as suas festas e soirées públicas celebradas em Sevilha e Madrid) do que em livros, o Ultraísmo conseguiu chegar à Argentina pela mão de Jorge Luis Borges – que conheceu os jovens poetas ultraístas durante a sua estância en Espanha– e à Polónia através de Tadeusz Peiper. No entanto, a sua presença em Portugal é praticamente impalpável, reduzindo-se a uma menção numa carta de Adriano del Valle a Fernando Pessoa de 10 de Novembro de 1924, em que comenta a aparição da revista Athena:

 

Dentro de la orientación que inicia Athena –muy antigua y muy moderna– ¿por qué no se inclinan un poco a la estética de la avant-guerra y de la post-guerra, que culminó –y culmina– en los nombres de Apollinaire, Max Jacob,  Reverdy, Cendrars, Paul Morand, Giraudoux y tantos otros nombres sugestivos? Temo que para ello sea una rémora el mismo título de la Revista –Athena– pero nosotros, los jóvenes, hicimos una revista en Sevilla que se tituló Grecia, en la que creamos la moderna y audaz escuela literaria que ha dado la vuelta al mundo con este nombre que no sé si habrá llegado a sus oídos: ultraísmo.

 

Se o nome do Ultraísmo tinha chegado aos ouvidos de Pessoa, não parece que isso tenha sido de modo algum determinante, já que não aparece qualquer referência ao mesmo na sua obra. Em todo caso, a “moderna y audaz escuela literaria que ha dado la vuelta al mundo” foi sempre vítima de uma estranha mistura de ambição e indefinição estéticas, que acabaram por fazer naufragar o movimento. Na transição entre 1918 e 1919 aparece o I Manifiesto Ultraísta, assinado por X. Bóveda, César A. Comet, F. Iglesias, G. De Torre, P. Iglesias Caballero, P. Garfias, J. Rivas Panedas e J. de Arocaque primeiro na imprensa madrilena e depois, em Janeiro, na revista Cervantes. A ambição e a ambiguidade estéticas da proposta estão já patentes nas suas palavras:

Nuestro lema será “ultra” y en nuestro credo cabrán todas las tendencias sin distinción, con tal que expresen un anhelo nuevo. Más tarde, estas tendencias lograrán su núcleo y se unificarán. Por el momento creemos suficiente lanzar este grito de renovación y anunciar la publicación de una revista que llevará el título de Ultra, y en la que sólo lo nuevo hallará acogida.

Cansinos Assens, em Abril de 1919 e a partir da revista Grecia, revisitou o primeiro manifesto do Ultraísmo no artigo “La nueva lírica y la revista Cervantes”, insistindo no carácter plural e heterogéneo do movimento. Estava então em Espanha o poeta chileno Vicente Huidobro, pai do Creacionismo que contagia poetas espanhóis como Gerardo Diego ou Juan Larrea, cuja proposta estética se tentou que fosse também devorada pelo rótulo único do Ultra, na apaixonada e algo turva visão de Cansinos:

Las tendencias superatrices de Nietzscke, d´Annunzio, Walt Whitman, Emerson, Verhaeren, el futurismo de Marinetti, el dinamismo manifestado en la lírica con los temas de las conquistas de la mecánica, la vida intensa, los aeroplanos, G. Apollinaire, en su conjunción con el arte abstracto o ideal; las obras de Mallarmé, Tristan Tzara, Max Jacob, F. Picabia, J. Cocteau, la revista Antología Dadá de Zurcí y el Norte-Sur de París… han producido el “ultra”, que es algo que está más allá del novecentismo. (…) Extrae elementos del futurismo, del dinamismo, del creacionismo que trajo V. Huidobro en su valija diplomática de novedades líricas del año 1918 (…) Ultra señala un movimiento literario, no una escuela…

Porém, a clara diferenciação que Cansinos estabelece entre movimento e escola (evidente, por exemplo, entre o Ultraísmo e o Creacionismo, respectivamente) não pôde ser bem compreendida ou interpretada nem pelos escritores do momento nem por boa parte da crítica literária durante décadas, mais interessada em mostrar o monopólio da grande poesia do Veintisiete como se ela tivesse surgido de um terreno quase estéril do ponto de vista estético.

Seja como for, a identidade do Ultraísmo foi sempre o cavalo de tróia da sua própria idiossincrasia enquanto grupo, apesar de o próprio Jorge Luis Borges se ter preocupado por várias ocasiões em tentar esclarecer o fundo estético do movimento, em cuja gestação palpitava a presença de Huidobro e a sua influência no conceito de nova imagem aplicado à lírica. Em 1921, Borges defendia nas páginas da revista de Buenos Aires Nosotros um dos poucos programas que tentaram sintetizar os princípios teóricos ultraístas:

 

1)Reducción de la lírica a su elemento primordial: la metáfora.

2)Tachadura de las frases medianeras, los nexos y los adjetivos inútiles.

3)Abolición  de los trebejos ornamentales, el confesionalismo, las prédicas y la nebulosidad rebuscada.

 

Porém, os seus problemas internos com o Creacionismo (as polémicas entre Guillermo de Torre e Vicente Huidobro foram muito azedas) e a confusão existente no meio da algazarra vanguardista, assim como a difusão de um novo “regresso à ordem estética” a partir de 1925, acabaram por obscurecer o papel desempenhado pelo Ultraísmo, um movimento em cujo cocktail estético participaram elementos cubistas, futuristas, dadaístas e expressionistas, asociados ao papel desempenhado pelo Creacionismo de Huidobro no seu momento de gestação. O seu carácter aberto às outras literaturas e o seu grito de liberdade supuseram, em todo caso, um dos elos imprescindíveis para a correcta compreensão do fenómeno da modernidade e da vanguardia literária em Espanha, cujos passos mais sólidos corresponderam, poucos anos mais tarde, aos poetas do Veintisiete, herdeiros igualmente da rica tradição lírica do Século de Ouro espanhol e da tradição da ruptura de que os ultraístas são um dos mais paradoxais episódios.

 

BIBL.: VIDELA, Gloria, El Ultraísmo. Estudio sobre movimientos de vanguardia en España, Madrid, Gredos, 1963; BERNAL, José Luis, El Ultraísmo,¿historia de un fracaso?, Cáceres, Universidad de Extremadura, 1988; BONET, Juan Manuel, “Baedeker del Ultraísmo”, in El Ultraísmo y las artes plásticas, Valencia, IVAM, 1996, pp. 9-59.

 

ANTONIO SÁEZ DELGADO