Vicente Guedes, um dos «outro eus» pessoanos mais multifacetados, terá surgido em 1909 como contista e tradutor de poetas que incluíam Shelley e Byron, de um romance de Robert Louis Stevenson, das tragédias de Ésquilo, e ainda de pré-heterónimos anglófonos como C. R. Anon, Horace James Faber e Alexander Search. É com estas competências que o seu nome figura em projectos da malograda Empresa Íbis – Tipográfica e Editora, fundada por Pessoa em fins de 1909 e extinta quase de imediato. No início de 1910, Vicente Guedes assina vários poemas (quatro dos quais publicados em Obra Essencial de Fernando Pessoa, v. 4, Poesia dos Outros Eus, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007) e quatro anos depois estreia-se como diarista. Com efeito, há um texto datado de 22/8/1914 e inicialmente designado «Crónica Decorativa» que foi rebaptizado «Diário de Vicente Guedes» (publicado in Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, v. II, p. 230). Trata-se de uma «homenagem» satírica a Fialho de Almeida no terceiro aniversário da sua morte (embora a data fictícia do texto — 11 de Maio de 1914 — corresponda, na verdade, ao terceiro aniversário do decreto-lei que regulamentava o internamento de pessoas em hospitais psiquiátricos). Este diário não teve continuação, mas pouco tempo depois, provavelmente já em 1915, Guedes passou a assinar um diário bem diferente: o Livro do Desassossego.

Na verdade, a faceta diarística desta obra era ainda reduzida em relação, por exemplo, aos «Grandes Trechos» de pendor simbolista, e não é impossível que Guedes, num primeiro momento, tenha sido encarregado de contribuir apenas com os conteúdos de um diário que ocuparia uma de várias secções do Livro, mas se assim aconteceu, depressa foi promovido a autor da obra toda, ganhando, com isso, espessura biográfica. Ajudante de guarda-livros e morador na Rua dos Retroseiros, 17-4.º, era um «dandy no espírito» que «passeou a arte de sonhar através do acaso de existir», sem ambições e com a capacidade de suportar a sua «vida nula com uma indiferença de mestre» (ver o Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998 [7.ª ed., 2007], texto AP1-AP3, no Apêndice).

Tuberculoso, como Alberto Caeiro, Vicente Guedes devia ter pressentido que a morte se aproximava, e por isso quis confiar o seu livro a Fernando Pessoa, que supostamente o conheceu num restaurante onde os dois costumavam jantar. Seria ainda identificado como autor do Livro em Aspectos, projecto de publicação de obras heteronímicas provavelmente concebido no início dos anos 1920. Em 1929, porém, cede o seu lugar a Bernardo Soares, também ajudante de guarda-livros e morador num quarto andar da Baixa lisboeta.

 

 

Richard Zenith