Os heterônimos pessoanos estão sempre às voltas com os principais problemas da filosofia ocidental, como a natureza do ser, sua origem e seu destino, a constituição do sujeito, a dualidade sujeito-objeto e a própria possibilidade do conhecimento por via racional. Todos esses problemas são por eles pensados e vividos com angústia. O excesso de intelectualismo acaba por ser identificado pelo poeta como uma “doença” do pensamento ocidental, agravada pelo sentimentalismo cristão. O “neopaganismo” idealizado por Pessoa visaria a reverter essa situação.

No conjunto da obra pessoana, os poemas de Alberto Caeiro propõem um caminho diverso, que levaria à saúde e à serenidade. Caeiro é o mestre dos “neopagãos”, não porque ele pretendesse ser um doutrinário, mas porque ele era, segundo seus discípulos, “o Paganismo Absoluto”. O paganismo de Caeiro não se assemelha, porém, ao paganismo greco-romano do período clássico. Quando muito, teria algo de pré-socrático. Sua obra não é filosófica, no sentido ocidental da palavra. Pelo fato de não se basear em conceitos, mas por ter vindo “com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão” (Páginas íntimas, p. 330), essa poesia pode ser caracterizada como uma proposta de sabedoria. Um tipo de sabedoria muito próximo daquela buscada nas doutrinas orientais.

Nos textos de Fernando Pessoa não há referências especiais a essas doutrinas, mas as semelhanças entre as postulações de Caeiro e o zen-budismo são notáveis. Tanto é assim que seu primeiro tradutor inglês, Thomas Merton, já as havia notado. Em 1964, tendo submetido suas traduções de Caeiro ao grande especialista do assunto, Daisetz Teitaro Suzuki, obteve dele a confirmação de que havia, nesses poemas,“uma grande qualidade zen”.

Tudo leva a crer que Pessoa-Caeiro adquiriu essa “qualidade zen” por uma via pessoal, intuitiva. Tentando descrever seu mestre, Ricardo Reis dizia: “Por uma intuição sobre-humana como aquelas que fundam religiões porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que recusa toda religião e toda metafísica, este homem descreveu o mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém uma interpretação” (Páginas Íntimas, p.331). Vale lembrar que o zen-budismo não é religioso, nem metafísico.

O Zen não é uma sabedoria contida em discursos, mas uma práxis existencial. A experiência zen não exige circunstâncias especiais: é apenas um modo de viver o cotidiano em sua objetividade, sem sobrecarregar cada gesto com pensamentos e sentimentos. Um mestre zen dizia: “Antes de me tornar esclarecido, os rios eram rios e as montanhas eram montanhas. Quando me tornei esclarecido, os rios já não eram rios e as montanhas já não eram montanhas. Agora, depois que me tornei esclarecido, os rios voltaram a ser rios e as montanhas voltaram a ser montanhas” (Zen-budismo e psicanálise, p. 137). Outra coisa não diz Caeiro: “O que vemos das cousas são as cousas”; “As estrelas não são senão estrelas / Nem as flores senão flores”.

O Zen busca a simplificação das vivências, despojadas de sobrecargas intelectuais ou sentimentais. Ricardo Reis observava: “Caeiro não tem ética a não ser a simplicidade” (Páginas Íntimas, p. 350). A “simplicidade” de Caeiro, como a dos mestres zen, não é a das crianças ou dos pobres de espírito, mas o resultado de um processo que passa por três etapas: 1) os rios são rios e as montanhas são montanhas (indissociação pré-racional de sujeito e objeto); 2) os rios não são rios e as montanhas não são montanhas (dissociação racional ou sentimental); 3) os rios são rios e as montanhas são montanhas (reconquista da unidade).

A aparente insignificância dos eventos aludidos por Caeiro em sua poesia decorre de uma sabedoria adquirida na vivência plena do real. O que D. T. Suzuki diz de Buda poderia ser dito de Caeiro: “Não foi o seu adestramento filosófico nem as suas austeridades ascéticas ou morais que levaram finalmente Buda a sua experiência da iluminação. Buda só a atingiu depois que abriu mão de todas as práticas superficiais. [...] As rochas estão onde estão – tal é a vontade delas. As plantas crescem – tal é a vontade delas. Os pássaros voam – tal é a vontade deles. Os seres humanos falam – tal é a sua vontade. Mudam as estações, o céu manda à terra chuva ou neve, a terra de vez em quando estremece, rolam as ondas, cintilam as estrelas – cada qual segue sua própria vontade” (Zen-budismo e psicanálise, p. 63). Os ensinamentos de Caeiro, como os de um zen-budista, consistem em trazer o homem de volta a seu cotidiano mais elementar: um outeiro, uma janela, uma “cadeira predileta”, as árvores que dão fruto à sua hora, o rio que corre sempre igual, “a chuva quando a chuva é precisa”, as estações que se revezam.

Nossa maneira habitual de pensar os objetos anula-os. É o que dizia um mestre zen: “Logo que começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar” (Zen-budismo e psicanálise, p. 27). O mestre Caeiro parece repeti-lo: “Não basta abrir a janela / Para ver as árvores e as folhas. / É preciso também não ter filosofia nenhuma. / Com filosofia não há árvores: há idéias apenas”; “Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo”.

Para o Zen, ver, e apenas ver, dá um conhecimento maior do mundo do que pensar nele. É o que propõe Caeiro: “O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa. / Pensar é essencialmente errar. / Errar é essencialmente estar cego e surdo”. Dessa certeza, decorre a desconfiança na linguagem, que é mediação. Como os zen-budistas, Caeiro busca um uso menos conceitual da linguagem: “Procuro dizer o que sinto / Sem pensar em que o sinto. / Procuro encostar a palavra à idéia / E não precisar de um corredor / Do pensamento para as palavras”.

Caeiro parecia conhecer o caminho do conhecimento zen, assim como suas dificuldades, sobretudo para uma mente ocidental: “O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê / Nem ver quando se pensa. / Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!) / Isso exige um estudo profundo, / Uma aprendizagem de desaprender”.

A primeira pergunta do discípulo zen, que o leva a buscar um mestre e, com a ajuda deste, um caminho de sabedoria, é aquela que rege toda a obra pessoana: “Quem sou eu?”. A busca do Eu pela via intelectual esbarra na impossibilidade de o sujeito pensar a si mesmo sem destruir-se, como objeto de pensamento. Enquanto os outros heterônimos e o ortônimo se debatem com essa questão pela via racional ou ocultista, Caeiro situa o Eu em sua existência física: “Nem sempre sou igual ao que digo e penso [...] / Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés - / O mesmo sempre, graças ao céu e à terra / E a meus olhos e ouvidos atentos / E à minha clara simplicidade de alma...” Para o Zen, este é o modo certo de vivenciar o Eu. Segundo D. T. Suzuki, “o Eu está sempre a mover-se ou a tornar-se. É um zero e uma estaticidade e, ao mesmo tempo, um infinito, a indicar que se move o tempo todo” (Zen-budismo e psicanálise, p. 36). O caminho zen é o da libertação do Ego, fonte de infelicidade, sua dissolução no fluir total do universo.

Para Pessoa, que passou a vida na busca desesperada de seu “eu mesmo”, o intervalo Caeiro seria um repouso e uma libertação. Caeiro pretende despir-se do Eu intelectual e do Eu sentimental, que provocam perplexidades e angústias. E diz: “Sou fácil de definir. / Vi como um danado. / Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma”. “Sem” é a preposição zen por excelência, pois o Zen é um despojamento, um “estado de não obtenção” que não é o resultado de uma renúncia triste (como a do estóico Ricardo Reis), mas uma conquista de liberdade e alegria.

A experiência central do Zen, buscada por seus praticantes, é o satori, palavra imperfeitamente traduzida por “iluminação” ou “esclarecimento”. O satori é uma experiência vital, abrupta, uma revelação das coisas como simples e plenas existências no mundo. Segundo D. T. Suzuki, “ele significa a descoberta de um mundo novo, desapercebido até então na confusão de um espírito formado no dualismo” (Zen-budismo e psicanálise, p. 270). Esse espanto, esse encantamento diante do mundo, é expresso por Caeiro: “A espantosa realidade das cousas / É a minha descoberta de todos os dias / Cada cousa é o que é, / E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra / E quanto isso me basta”. Depois da experiência do satori, o indivíduo se torna um sábio, eventualmente um mestre, realizando naturalmente os ideais da vida zen: desapego, despretensão, simplicidade, tendência à solidão, uma existência como a de Caeiro: “Não sei o que é a Natureza: canto-a. / Vivo no cimo dum outeiro / Numa casa caiada e sozinha, / E essa é a minha definição”.

A expressão poética do zen-budismo é o haicai japonês, poema breve em 3 versos, no qual se consigna uma percepção instantânea da realidade, desprovida de interpretação e de moral. Poema sintético, concentrado e compacto, o haicai é o registro verbal de um pequeno satori. Três traços temáticos caracterizam o haicai: o quê, onde e quando.

Num exercício próximo ao que propunha o poeta Manuel Bandeira, que convidava a se “desentranhar poesia” em textos alheios, podemos comprovar a “qualidade zen” dos poemas de Caeiro isolando, neles, trechos que correspondem à estética do haicai. Por exemplo: “Esfria no fundo da planície / E se sente a noite entrada / Como uma borboleta pela janela”; “Esta tarde a trovoada caiu / Pelas encostas do céu abaixo / Como um pedregulho enorme”; “O luar através dos altos ramos / É não ser mais / Que o luar através dos altos ramos”; “Meto-me para dentro e fecho a janela. / Trazem o candeeiro e dão as boas noites, / E a minha voz contente dá as boas noites”; “Uma gargalhada de rapariga soa na estrada. / Riu do que disse quem não vejo. / Lembro-me já que ouvi”; “A noite é muito escura. / Numa casa a uma grande distância / Brilha a luz duma janela”.

Apesar das semelhanças da poesia de Caeiro com a poesia zen, o heterônimo pessoano não realiza totalmente o objetivo dessa poesia. Ele não se contenta com seus satoris, mas prolonga-os com análises e explicações. Malgrado suas declarações antiintelectualistas, ele é, como os outros poetas da coterie, um poeta intelectual. Pretendendo libertar-se de toda teorização, seus poemas expõem uma teoria. É um mestre que busca a ensinar a si mesmo, o que nem sempre consegue, como atesta a freqüência das fórmulas “quem me dera...”, “se eu pudesse...” ou “como é difícil...” Sua “naturalidade” não é natural; é construída e teorizada. Enfim, Caeiro não é tão Caeiro quanto pretende ser.

Como já foi observado pela crítica, Caeiro não é a almejada “saúde” pretendida por Pessoa, nem a solução definitiva para seus problemas metafísicos. Mas o espaço ocupado por ele, no conjunto da obra pessoana, é o mais respirável, um entreato milagrosamente abrigado das dilacerações mentais dos outros, uma zona de cura, mesmo se apenas uma cura sonhada.

 

BIBL.: D. T. Suzuki, Erich Fromm & Richard de Martino, Zen-budismo e psicanálise, São Paulo, Cultrix, 1976; Zenith, Richard, “Alberto Caeiro as Zen Heteronym”, in Pessoa’s Alberto Caeiro, Portuguese Literary and Cultural Studies, n.º 3, University of Massachusetts Dartmouth.

 

 

 

Leyla Perrone-Moisés