Orpheu

 

"Revista Trimestral de Literatura"

A revista literária Orpheu estreou-se na cena cultural portuguesa a 24 de março de 1915, seguindo-se um segundo número a 28 de junho. Inicialmente planeada como publicação trimestral, a revista teve uma vida bastante curta, não chegando a sair o terceiro número, por razões sobretudo financeiras. Embora Orpheu tenha sido o produto intelectual de um grupo de jovens poetas e artistas praticamente desconhecidos, os seus dois números provocaram de imediato um escândalo literário de proporções significativas para um fenómeno literário, que se arrastou ao longo de vários meses na imprensa portuguesa, assegurando a sua reputação para além do momento da publicação. O escândalo deveu-se sobretudo à novidade formal e estilística nos domínios literário e artístico introduzida pela revista, que causou grande estranheza num meio cultural marcado pelo passadismo. Logo a 27 de março, por exemplo, O Mundo referiu-se-lhe como “uma espécie de resumo das várias correntes modernas na nossa literatura”, que incluía “variada colaboração das mais características figuras de entre os novos”. A ênfase na modernidade e novidade preconizada pela revista corrobora o seu cariz vanguardista relativamente ao contexto em que surge enquanto publicação mais representativa da primeira geração modernista portuguesa. Como nota Fernando Cabral Martins, Orpheu “é sinédoque de Modernismo, revista-signo de momento, cujo nome passa a identificar uma geração e uma poética”.[1] Efetivamente, a revista protagoniza o “momento ativista” que Renato Poggioli identifica como constituinte dos movimentos vanguardistas nascentes,[2] mas tem um alcance mais duradouro que comporta quer uma dimensão geracional quer uma forma de expressão característica, como se constatou pelas inúmeras produções “à maneira de Orpheu” suas contemporâneas. Adequa-se, igualmente, a classificação que Fernando Pessoa lhe deu de “corrente”, capaz de abarcar o impacto transgeracional daquele “movimento cultural” (como o denomina Arnaldo Saraiva)[3] nas letras portuguesas, que se renovaria assumidamente nas neovanguardas experimentalistas dos anos 60 e 70.

Se, por um lado, o fenómeno literário de Orpheu antecipou a modernidade numa Lisboa que se encontrava ainda em fase prematura de modernização, por outro, e no domínio internacional, é de notar a contemporaneidade da revista com algumas das primeiras expressões modernistas europeias. Esse aspeto é notório se considerarmos que as origens de Orpheu remontam a 1912, 1913, anos em que alguns dos seus primeiros colaboradores – nomeadamente Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Alfredo Pedro Guisado, Armando Côrtes-Rodrigues e Almada Negreiros – se aproximaram e os dois primeiros começaram a projetá-la. Salienta-se, igualmente, a vertente transnacional associada à revista, sobretudo em virtude das estadias prolongadas no estrangeiro de alguns dos seus colaboradores, como é o caso de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e José Pacheco, que tiveram, antes do Orpheu, experiências artísticas significativas em Paris. Aliás, o teor interartístico da revista, que reflete essas experiências, é comparado a fenómenos análogos europeus por Almada Negreiros, para quem se “dava aqui (...) o mesmo que eclodira pouco antes em Paris: o encontro das letras e da pintura”.[4] De igual forma, Orpheu reflete um encontro transatlântico, resultando da fusão dos projetos de revista de Pessoa e Sá-Carneiro e do que fora partilhado por Ronald de Carvalho e Luís de Montalvor, que este trouxera consigo do Brasil, ocasionando um primeiro número co-sediado em Portugal e no Brasil, tendo como diretores Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho, e apresentando colaboração portuguesa e brasileira em ambos os números.

Alia-se ao transculturalismo da revista, a sua transdisciplinaridade, caracterizada por uma tendência para sintetizar alguns dos ‘Ismos’ mais significantes da época. Para Pessoa, o mentor estético da revista, enquanto “órgão” do “sensacionismo”, Orpheu almeja a ser “uma arte-todas-as-artes” que “deve encerrar, a par da subtileza dos symbolistas, e da velocidade dos whitmanistas, (chamo assim, para lhes marcar a origem, a cubistas, futuristas e a outros modernos (da nossa epocha?) dynamistas ...”.[5] A frase fica suspensa neste fragmento de “dialógico imaginário” que se inicia com a questão “Quer saber então o que é Orpheu?”, mas a estas estéticas importadas que influenciaram a produção literária e artística dos órficos, Pessoa adiciona, além do sensacionismo, o paúlismo e o interseccionismo, que inspiraram colaborações suas e de outros colaboradores incluídas em ambos os números da revista.

Apartidária em termos políticos, Orpheu é apresentada por Pessoa como plataforma de um nacionalismo cosmopolita, por contraponto ao “provincianismo radical” da literatura ibérica,[6] e num esforço de se distanciar do nacionalismo saudosista da Renascença Portuguesa e tradicionalista do Integralismo Lusitano, seus contemporâneos. Por conseguinte, em 1914 Pessoa e Sá-Carneiro pensavam intitular a revista de Europa.[7] Steffen Dix sugere que “o célebre paradoxo do nacionalismo cosmopolita que Pessoa mencionou por esta altura” pode ser melhor compreendido no contexto do “clima intelectual durante e um pouco antes de 1914”, caracterizado por “uma curiosa proximidade entre cosmopolitismo e nacionalismo”, refletindo dessa forma a condição volátil que se vivia na Europa no período de pré-guerra.[8] Posteriormente, os de Orpheu autodenominar-se-ão de “portugueses que escrevem para a Europa”.[9] Tal objetivo correspondia não só a um intuito de europeizar Portugal, apresentando as modernas correntes europeias ao país, mas também e sobretudo de dar a conhecer a modernidade portuguesa no plano internacional. Justificam-se desta forma as tentativas de Pessoa de dar a conhecer a revista e as correntes estéticas a ela associadas no espaço europeu, com especial destaque para Londres – encontrando-se no seu espólio inúmeros rascunhos de cartas a esse respeito endereçadas a vários editores ingleses e fragmentos de prefácios – e Madrid, chegando a escrever a Miguel de Unamuno no sentido de celebrar uma “entente ibérica” que projetasse ambas as literaturas internacionalmente.[10]

 

Patrícia Silva



[1] “Orpheu continua”, Orpheu, ed. fac-similada, 2ª ed. Lisboa: Contexto, 1994, s.p.
[2] Renato Poggioli, The Theory of the Avant-garde, Cambridge, MA: Harvard UP, 1968, p. 25.
[3] Arnaldo Saraiva, Os órfãos do Orpheu, Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 2015, p. 22.
[4] José de Almada Negreiros, “Orpheu”, Textos de Intervenção, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, pp. 169-188.
[5] Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros Ismos, org. Jerónimo Pizarro, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009, pp. 75-76, 475.
[6] Fernando Pessoa, Ibéria: Introdução a Um Imperialismo Futuro, org. Jerónimo Pizarro e Pablo Xavier Pérez López, Lisboa: Ática, 2012, p. 112.
[7] Mário de Sá-Carneiro, Em Ouro e Alma: Correspondência com Fernando Pessoa, org.  Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro, Lisboa: Tinta-da-china, 2015, p. 231.
[8] Steffen Dix, “O Ano de 1915: Um Mundo em Fragmentos e a Normalização dos Extremos”, 1915: O ano do Orpheu, org. Steffen Dix, Lisboa: Tinta-da-china, p. 23.
[9] Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, org. Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Ática, 1966, p. 121.
[10] Fernando Pessoa, Pessoa Inédito, org. Teresa Rita Lopes, Lisboa: Livros Horizonte, 1993, p. 314.