Pode parecer extraordinário que Pessoa tenha passado de uma revista como Athena, que sai em 1924 e 1925, e que é um dos altos lugares do Modernismo artístico português, para uma revista como esta, dedicada ao estudo da teoria e da sociologia do comércio e ao esclarecimento dos problemas de organização de um escritório comercial, com especial incidência na questão dos arquivos, que sai, em seis números, desde Janeiro a Junho de 1926, dirigida pelo seu cunhado Francisco Caetano Dias e que Pessoa  escreve em parte substancial. De facto, esta imersão de Pessoa nos problemas gerais e concretos da sua profissão vai acabar por ter consequências, pois tal dedicação moderna a uma causa tão pouco elevada e artística não só é conduzida inteiramente a sério e com toda a profundidade possível, como há-de, por uma súbita alquimia, sugerir a criação de uma figura inteiramente nova do universo heteronímico, o singular Bernardo Soares, um «ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa» que surge pouco depois, em 1928-1929, como «compositor» do Livro do Desassossego. E é este também um dos pontos mais salientes pelos quais a figura de Pessoa ecoa a de Mallarmé, pois este ousou igualmente a trivialidade com a sua revista La Dernière Mode.


O Sol, de tendência republicana, reproduz no mesmo ano um dos artigos aí publicados, «Organizar».  Também A Informação, dirigida pelo monárquico Homem Cristo Filho, transcreve outro dos artigos, «Régie Monopólio, Liberdade», com a devida vénia – trata-se, de resto, de um debate que está a ter lugar na Câmara dos Deputados, e que agita a nação. Por aqui se percebe que não é uma pura teoria do comércio que interessa a Pessoa nas suas colaborações para a revista, nem sequer uma divulgação com objectivos estritamente profissionais, para contabilistas ou empresários, mas sobretudo uma intervenção social. Mas sem deixar os voos especulativos, como no artigo sobre «A Evolução do Comércio», em que o comércio é comparado com a cultura, a indústria com a arte, e o desenvolvimento da argumentação se mantém nesses paralelos. E, se um artigo como «A Reforma do Calendário e as suas Consequências Comerciais» roça a inutilidade, pelo comprometimento excessivo com temas de circunstância, já «Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular» toca temas filosóficos centrais de Pessoa – a essencial  irracionalidade do homem, por exemplo – e destinam-se a uma intervenção pedagógica forte. Alguns dos temas para que apontam têm mesmo características de originalidade e percuciência, sobretudo o artigo «As Algemas», publicado no n.º 2, a 25 de Fevereiro de 1926, que expõe as razões da nocividade social de todas as proibições de venda livre de drogas ou de álcool, e ainda as razões para uma circulação de mercadorias livre de empecilhos aduaneiros.

Um aspecto curioso, e que marca a construção quase-heteronímica do «autor» destes artigos, é a importância dada à questão organizacional, e o esforço que implica um artigo com o grau de especialização de «O Arquivo de Correspondência»: como é que tal excesso de organização, uma tal obsessão do pormenor, que implica tanta preocupação de método, se pode comparar com – uma vez mudado o empregado de escritório em poeta – a corrente descontínua de fragmentos que é a sua obra?

 Fernando Cabral Martins


Bibl.: ALMEIDA, L. P. Moitinho de, Fernando Pessoa – No Cinquentenário da sua Morte, Coimbra, Coimbra Editora, 1985;  FERREIRA, António Mega, Fazer pela Vida, Lisboa Assírio & Alvim, 2005; SOUSA, João Rui de, Fernando Pessoa – Empregado de Escritório, Lisboa, Sitese, 1985.